Valor Econômico
Há mais conflitos armados em andamento,
agravando a crise dos refugiados e turbinando as estatísticas de mortes em
combates
Durou poucos meses a Primavera de Praga, o
respiro democrático de 1968, quando a população saiu às ruas para protestar
contra o regime autoritário da então União Soviética - da qual a
Tchecoslováquia fazia parte - e alçou conquistas como liberdade de expressão e
o fim da censura à imprensa. Logo tanques russos invadiram a capital, Moscou
retomou o governo e radicalizou a repressão que se estendeu por mais de 20
anos.
O conflito tcheco é pano de fundo do romance “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, morto em julho. Na obra, a eclosão do embate aprofunda a crise existencial dos personagens, impondo a reflexão sobre o impacto da guerra nos destinos humanos.
Em um ensaio sobre a leveza, o escritor Italo
Calvino, morto em 1985, referiu-se ao livro de Kundera como a “constatação
amarga do inelutável peso de viver”. Convidado a ministrar um ciclo de
conferências na Universidade de Harvard, Calvino elegeu a leveza como um dos
valores - literários e humanos - a serem preservados para o século XXI.
Ao se deparar com uma realidade opaca,
apática e perversa, Calvino afirmou que o mundo inteiro parecia transformado em
pedra, como se “ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa”. Lembrou
que o único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa foi Perseu, que voava com
sandálias aladas, e sustentava-se sobre o que há de mais leve, “as nuvens e o
vento”.
No mesmo texto, Calvino observou que, sob
vários aspectos, a época que serve de pano de fundo à peça “Romeu e Julieta”,
de William Shakespeare, “não difere muito das nossas cidades ensanguentadas, de
disputas tão violentas e insensatas quanto as dos Capuleto e Montecchio” -
alusão às famílias adversárias, cuja guerra particular é obstáculo ao amor dos
protagonistas.
Para Calvino, a guerra simboliza o peso de
viver, sobretudo ao interromper abruptamente os destinos de inocentes, em especial
de crianças. Peso que desabou no Oriente Médio, a partir do ataque terrorista
do Hamas contra civis israelenses no sábado, e que motivou a reação de Israel,
e um novo capítulo da guerra sangrenta entre os dois povos.
Há um ano e meio, a Rússia invadiu a Ucrânia,
ocupando pontos de fronteira no país europeu, e lançando bombas sobre as
principais cidades ao redor do país, dando início a uma guerra que até a semana
passada era o principal foco de atenções do palco internacional. Agora divide
os sombrios holofotes com o conflito no Oriente Médio.
Há mais conflitos armados em andamento,
agravando a crise dos refugiados e turbinando as estatísticas de mortes em
combates: Síria, Iêmen, Etiópia, Afeganistâo, Haiti e Mianmar, além dos grupos
jihadistas em atuação em vários países da África.
O mundo está sobrecarregado de sangue e
sofrimento. Não se pode afirmar, na definição exata do termo, que o Brasil
encontra-se em guerra. Num cenário em que confrontos entre a polícia e os
criminosos, ou entre facções criminosas ceifam vidas com balas perdidas,
impedem o funcionamento de escolas, restringem a liberdade de ir e vir de
moradores das regiões atingidas, o que podemos dizer é que regiões do país
vivem em estado de guerra.
Nesta segunda-feira, as forças de segurança
no Rio de Janeiro montaram uma verdadeira operação bélica, mobilizando mil
agentes das polícias Militar e Civil, em ações simultâneas no Complexo da Maré,
na Vila Cruzeiro e na Cidade de Deus. O alvo era a facção criminosa a quem se
atribui a morte de três médicos em um quiosque em área nobre da capital
fluminense na semana passada.
O poder bélico dos criminosos é tão
impressionante que disparos de fuzis atingiram dois helicópteros, que tiveram
de fazer pousos de emergência. Na verdade, estas aeronaves são o símbolo mais
evidente do estado de guerra do Rio de Janeiro. Vejam que o seguro das
aeronaves tem “cláusulas de guerra”, ou seja, condições especiais mais comuns
em países em conflito, como a Rússia e a Ucrânia, que contemplam reparos em
casos de acidentes em conflitos armados.
Se o Brasil não declarou guerra contra um
oponente, a Natureza declarou guerra ao país, em meio ao aquecimento global. A
região da Floresta Amazônica enfrenta uma seca que pode bater recordes, com
rios em níveis mínimos, mortes de peixes e botos, população ribeirinha com
carência de itens básicos. Dezenas de municípios do Amazonas estão em situação
de emergência. Há risco desta estiagem superar a megasseca de 2005, quando o
Estado agonizou com falta de alimentos, água, combustível e energia.
Se o Norte sofre com a estiagem, a Região Sul
está praticamente submersa. Há um mês, um ciclone extratropical causou dezenas
de mortes e devastou cidades no Rio Grande do Sul, destruindo comércios e obras
de infraestrutura. Até hoje, fortes chuvas assolam a região.
A sucessão de guerras e conflitos encurrala
os cidadãos, dissemina o terror, e cobra saída premente para a paz.
Se escolhesse um símbolo para saudar o novo
milênio, que não viu chegar, Calvino escolheria a leveza. “Cada vez que o reino
do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu
eu deveria voar para outro espaço”. Mas como fazer, sem as sandálias aladas de
Perseu?
4 comentários:
Atente-se para um fato.
=》Não há no mundo sequer uma democracia em guerra contra outra democracia.
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Estou tentando lembrar de alguma vez nas últimas décadas, após as democracia se consolidaram, de ter havido uma guerra entre duas democracias. Não me recordo de nenhuma.
No Norte do Brasil, a colunista poderia ter destacado as centenas de mortes em Manaus e arredores por falta de oxigênio, durante a pandemia de Covid no recente DESgoverno Bolsonaro, e o genocídio ianomâmi no finas deste DESgoverno, quando o genocida abandonou os índios à própria sorte, levando à morte, descontrole de doenças e fome generalizada de milhares de índios, e levando o STF a ter que OBRIGAR o governo federal a agir, situação que escandalizou o mundo inteiro quando o governo Lula começou a reverter a situação e a mídia se conscientizou dos meses de abandono no final do DESgoverno genocida de Bolsonaro.
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