Por Daniela Chiaretti / Valor Econômico
Gaza é prisão a céu aberto. Eles não têm muito o que perder. Querem uma solução definitiva”
“São crimes de guerra que devem ser
condenados de maneira inequívoca. Não é uma guerra contra o Estado de Israel
apenas, mas contra a população israelense”, diz o embaixador Rubens Ricupero,
condenando o ataque do Hamas a Israel no sábado. “O que está acontecendo no
Oriente Médio ocorre no pior momento possível. O mundo já está com muita
angústia. O medo de uma nova recessão, que não estava afastada agora aumenta”,
continua o jurista, que foi ministro do Meio Ambiente e também da Fazenda.
“Não se pode esquecer que a economia mundial
não tinha se recuperado da covid. Em cima disso ocorreu a guerra da Ucrânia e
agora, que se tenta superar a inflação sem cair na recessão, vem uma nova
guerra”, continua. Ricupero lembra que os países poderosos, com assentos
permanentes no Conselho de Segurança da ONU, têm posições distantes. “Mas mesmo
que o Conselho de Segurança concorde com uma resolução, o poder dela é
simbólico”, diz ele.
Na entrevista ao Valor, o ex-embaixador
do Brasil nos EUA dá ideia da complexidade do quadro - a fragilidade de Israel
nos últimos anos, o ressentimento dos palestinos, o impacto da guerra no
Brasil. “O problema é que o vem depois”, diz.
A seguir trechos:
Valor: Como o senhor vê o desdobramento
dessa guerra?
Rubens Ricupero: Quero deixar claro uma
condenação absoluta aos atentados contra civis em Israel. Não é uma guerra como
a do Yom Kippur, feita por exércitos regulares com a conquista de objetivos
militares. É uma invasão com o objetivo de matar o maior número de pessoas
indiscriminadamente, e fazer reféns. São crimes de guerra que devem ser
condenados de maneira clara e inequívoca. Não é uma guerra contra o Estado de
Israel apenas, mas contra a população israelense. O maior número de vítimas foi
o massacre feito na rave, com 260 mortos jovens, desarmados e que estavam
festejando. É um crime inominável e deve ser repelido de maneira veemente.
Valor: O que pode acontecer com o
petróleo e commodities?
Ricupero: É cedo para dizer, irá
depender da duração e da envergadura das operações militares. Antes da guerra o
preço do petróleo estava caindo, e a Arábia Saudita tinha decidido cortes
adicionais na produção. O primeiro efeito da guerra foi fazer aumentar os preços
de novo. É difícil dizer agora até que ponto vai. Se a guerra se prolongar
muito tempo, o efeito será muito negativo e o preço do petróleo deve aumentar
por várias razões.
Valor: Quais?
Ricupero: Se Israel transformar a Faixa
de Gaza em um monte de ruínas, vai ser mais difícil a Arábia Saudita voltar à
produção normal de petróleo. A medida seria interpretada como favorável aos
interesses dos americanos e ocidentais, aliados de Israel. Se houver um aumento
de sanções contra o Irã, a mesma coisa. A Rússia, outro grande produtor, está
com uma posição neutra na guerra. As autoridades russas se pronunciaram de
maneira diferente do que fizeram no passado. Sempre condenavam atentados contra
civis e manifestavam condolências. Vladimir Putin falava com o líder de Israel.
Dessa vez, adotaram uma distante neutralidade. Fizeram comunicado mostrando
apreensão, mas não entraram em condenações específicas, não expressaram
condolências nem deram nenhum sinal de interesse de Putin em mostrar que ainda
é uma influência no Oriente Médio.
Valor: Qual o motivo?
Ricupero: Está sendo interpretado de
duas maneiras. Uma em função da guerra na Ucrânia, que é o foco dele. E o
segundo é o Irã, que se tornou um aliado estreito da Rússia, é quem fornece
drones a eles. No domingo houve reunião do Conselho de Segurança da ONU, a
portas fechadas. As agências dizem que o Conselho não chegou a nenhum acordo
porque as posições dos países com poder estão muito distantes.
Valor: Pode explicar?
Ricupero: Em um extremo, os Estados
Unidos, que pressionavam pela aprovação de uma resolução que concentrasse o
foco na condenação do Hamas, da maneira mais forte possível, mas sem mencionar
negociações de paz, as raízes da guerra, a necessidade que a resposta israelense
não seja exagerada. Os EUA não queriam colocar nada disso nas resoluções.
Outros países, que não se sabe exatamente quais, mas se entende que sejam a
Rússia, a China e outros, querem uma resolução mais ampla, que não fique apenas
na condenação ao Hamas, mas que aponte um caminho - um cessar-fogo imediato,
iniciar negociações, procurar uma solução definitiva para o problema
palestino-israelense. Não houve consenso e as consultas vão continuar. Mas tem
que se ter em mente que isso não afeta muito a conduta do conflito.
Valor: O Conselho de Segurança não pode
fazer muito?
Ricupero: Mesmo que o Conselho de
Segurança concorde com uma resolução, o poder dela é simbólico. Pode condenar o
Hamas, mas dificilmente terá algum poder sobre o desejo dos israelenses de
fecharem as operações. As operações mal começaram. Na manhã de hoje
(segunda-feira), o Ministério da Defesa de Israel decretou o cerco completo da
Faixa de Gaza. Não vão deixar entrar água, comida, eletricidade. É o prelúdio
de um ataque. Vai se desfechar um ataque muito grande, que não se sabe
exatamente se será um ataque aéreo ou se farão também uma operação terrestre.
Vai haver muitas mortes, sobretudo do lado palestino, mas também do lado dos
invasores. A Faixa de Gaza é um território muito pequeno com dois milhões de
habitantes, uma das áreas de maior densidade de população do mundo. E eles não
têm para onde correr. Em uma operação terrestre haverá um custo humano muito
alto também do lado israelense. O problema é o que vão fazer depois disso.
Valor: Depois?
Ricupero: Tudo isso é ainda obscuro. Estamos naquilo que se chama “the fog of war”, o nevoeiro da guerra. O que se sabe apenas é o desencadeamento do que foi um ataque do Hamas, agora vem o outro lado. E tem mais de uma centena de reféns israelenses. É mais uma incógnita: Israel vai negociar ou atacará sem levar em conta o destino dos reféns?
Valor: Qual é a causa disso?
Ricupero: Os israelenses estavam convencidos
há anos que o Hamas não despejaria mais um ataque. Que já havia sofrido um
impacto tão grande na retaliação israelense que havia se contentado em dominar
a Faixa de Gaza. O fato é que o Hamas estava armando uma grande operação que
deve ter sido montada com semanas de antecedência sem que os israelenses
percebessem. O lançamento de mísseis foi uma cortina de fumaça
Valor: Uma cortina de fumaça?
Ricupero: Para que não percebessem a
invasão terrestre. No passado, toda vez que o Hamas tentou entrar em Israel foi
através de túneis cavados, que os israelenses destruíram depois e ergueram
barreiras. Só que o Hamas derrubou as barreiras e invadiu o território por
terra enquanto jogava os mísseis. O dano maior que fizeram foi matando as
pessoas nas ruas, nas casas, na rave. Os mísseis disfarçaram uma invasão
terrestre. Como disse o embaixador de Israel na ONU foi um “Pogrom”, mataram as
pessoas por serem judeus. Agora, o Hamas sabe que com isso não irá derrotar
Israel.
Valor: Qual é o objetivo deles?
Ricupero: O primeiro é demonstrar que
eles é que representam a causa palestina e não a Autoridade Palestina, do
Mahmoud Abbas, que controla a Margem Ocidental (do rio Jordão, ou “West Bank”).
Ele já estava desmoralizado porque os israelenses cada vez mais estavam permitindo
novos colonos. O Hamas indica agora que ele é quem representa a resistência
contra os israelenses. Um segundo objetivo visa a estratégia que tem sido
seguida pelos Estados Unidos desde Donald Trump. A política de Trump para o
Oriente Médio era apoiar totalmente Israel e estimulava a desconhecer os
direitos dos palestinos. Segundo, procurava normalizar o relacionamento de
Israel com países árabes mais sujeitos às relações americanas. E o terceiro
objetivo era levar a Arábia Saudita a imitar esse exemplo. Joe Biden continuou
essa política.
Valor: Há um terceiro objetivo?
Ricupero: Têm esperança de sobreviver,
graças aos reféns, e forçar uma solução definitiva. A Faixa de Gaza é uma
prisão a céu aberto. Vivem uma vida muito difícil, não têm muito o que perder.
Querem algo que acabe com o cerco e querem garantias. Imaginaram que esse ato
de violência é a maneira de chamar a atenção para o destino deles, que é
preciso encontrar uma solução para os palestinos. Li no domingo o Haaretz, o
melhor jornal de Israel. No editorial, coloca a culpa em Benjamin Netanyahu, o
primeiro-ministro de Israel.
Valor: Qual o argumento?
Ricupero: Porque exerceu o poder há 14
anos com o grande título de ser o homem que ia garantir segurança aos cidadãos
israelenses. Mas perseguiu uma política que alimentou esse tipo de ataque,
porque não deu esperança nenhuma aos palestinos. Ultimamente, quando voltou ao
poder, agravou a situação porque retornou com uma coligação de extrema direita.
Segundo o jornal, sua preocupação é salvar a própria pele porque está sendo
processado pela justiça criminal de Israel por corrupção. Ao voltar ao poder,
deu atenção basicamente à reforma do Judiciário. Em vez de resolver o problema
pendente com os palestinos, que ignorou, desencadeou essa crise que dividiu
Israel pela metade e enfraqueceu o país. Israel está dividido como o Brasil e
os Estados Unidos, em duas metades.
Valor: Qual seria a reação dos outros?
Ricupero: No passado, a fonte da
resistência a Israel era o Egito e a Síria. Em determinado momento também foi o
Iraque. Com as mudanças históricas estes países foram sendo neutralizados. Só o
Irã, que não é árabe, é o único país que o Ocidente não controla, tem força
militar própria, recursos do petróleo e é a grande força dessa região.
Isso nunca teria acontecido na época em que
os Estados Unidos tinham um poder incontestável naquela região.
A situação mundial hoje é muito pior do que
foi quando houve outros acontecimentos desse tipo. Hoje estamos em um mundo em
que a guerra da Ucrânia inaugurou novamente a guerra na Europa, o mundo em que
os Estados Unidos e a China se encontram como dois polos de um antagonismo
crescente em todos os setores. É um mundo muito deteriorado, em que a
possibilidade de um consenso mundial é mínima -e isso se vê até nas negociações
climáticas. O mundo de hoje é um sistema internacional com enorme dose de
conflito.
Valor: E para o Brasil?
Ricupero: O impacto para o Brasil em
termos de petróleo é negativo, mas o país é um grande exportador de petróleo. O
Brasil ganha e perde. Mas o que está acontecendo lá ocorre no pior momento
possível. O mundo já está com muita angústia. O medo de uma nova recessão, que
não estava afastada agora aumenta. Não se pode esquecer que a economia mundial
não tinha se recuperado da covid, em cima disso a guerra da Ucrânia e agora
tentar superar a inflação sem cair na recessão, agora vem uma nova guerra, no
Oriente Médio.
Valor: Qual o cenário?
Ricupero: A política de Netanyahu de encostar os palestinos na parede criou condições para uma reação até suicida, como a do Hamas. Agora, confrontado com tudo isso, vai querer mostrar que pode reverter a situação. A chance de um banho de sangue é imensa. Isso irá agravar mais o ressentimento dos palestinos.
Um comentário:
Estaria Pútin assim tão quietinho, mesmo? Nada melhor para ele que ser criada uma nova frente de batalha fora da Ucrânia. Só lhe falta a China engrossar o caldo em Taiwan...
Os EUA, sem presidente no Congresso, vai ter que dividir esforços em duas frentes (por enquanto). E isso prejudica Zelensky e AJUDA Pútin. O caldo de cultura para um novo conflito mundial está se formando celeremente.
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