Folha de S. Paulo
Debate das últimas semanas registra um revés
para o estilo identitário de ativismo que cerca a opinião pública
O debate público das últimas semanas
registrou um revés para o estilo identitário de ativismo na opinião pública.
Os episódios, em sequência, do linchamento
moral da professora da UFBA e
da revelação de posts de cunho racista da então assessora do Ministério da
Igualdade Racial foram lidos, fora dos círculos habituais de
condescendência, como sólidas evidências das críticas que se fazem ao modelo
identitário de luta política: a beligerância permanente, a satanização do
antagonista, a paixão por vigiar e punir, a vitimização como álibi para a
violência e o duplo padrão moral adotado, que não tolera a menor violação por
parte dos outros, mas que concede imunidades especiais aos seus.
Naturalmente, os interessados em garantir prerrogativas morais para esse estilo de militância se sentiram compelidos aos panos quentes e à racionalização. Uma das defesas mais especiosas foi o recurso a uma "ética de inscrição", por contraste com uma "ética de atitudes" que você e eu adotamos.
Na ética de atitudes, os comportamentos são
julgados, um a um e à luz de valores, para serem considerados certos ou
errados. Na ética de inscrição, os que fazem parte de um grupo especial
—seguidores da fé verdadeira, quem quer a emancipação dos seres humanos,
pessoas oprimidas et cetera— estão moralmente aprovados mesmo quando agem mal.
No máximo, cometem deslizes. A moralidade da sua inscrição se sobrepõe à
imoralidade do comportamento e a anula.
A segunda linha de defesa é um clássico. Eu
já a chamei nesta coluna de "mimetismo defensivo" e consiste
basicamente em vender a ideia de que o identitarismo não é uma estratégia de
militância, mas a forma de ser de movimentos com pautas morais elevadas.
Ora, a política de identidade, desde que se
começou a teorizá-la no fim dos anos 1970, é apresentada como um tipo de
estratégia política de grupos estigmatizados. Não se confunde com os próprios
grupos, que podem ou não adotá-la. Havia feminismo e luta por direitos civis
antes dos anos 1980, assim como é possível ser feminista e antirracista sem
adotar a militância identitária.
Mas, convenhamos, há coisa mais confortável
do que se dizer, complacentemente, que identitários negros são "o movimento
negro" e que, como são vítimas da sociedade, o que fazem é desculpável? Ou
que quem condena uma prática deplorável de um transativista identitário está
atacando todas as pessoas trans? A causa de um movimento vira um escudo: é
preciso que o crítico do comportamento seja lido como inimigo da causa.
De fato, o movimento negro luta por direitos,
mas quem adota um padrão identitário de militância sobrecarrega essa luta,
quando não se desvia dela, para se dedicar cotidianamente às suas estratégias
de vitimização, de vocalização do ressentimento, de defesa do seu monopólio da
virtude, de coleta e desfrute pessoal de bônus e compensações devidos a todos
aqueles de quem se proclama representante, de guerrilha permanente.
Desculpem, isso não é luta para conquistar
coisas, mas por superioridade moral e por posições no mercado de virtudes.
O
identitarismo é só um estilo de militância, organizada em torno da
identidade coletiva de um grupo cujos membros se consideram estigmatizados ou
oprimidos pelo resto da sociedade, para enfrentá-lo por meio da luta por
representações, valores, comportamentos e linguagem.
Há identitários de esquerda ou de direita,
conservadores ou liberais. Há, inclusive, identitários pertencentes a maiorias
demográficas, como os xenófobos anti-islâmicos da Europa. Evangélicos,
nacionalistas de direita ou de esquerda e até a militância homofóbica adotam
padrões identitários de militância em toda parte do mundo. Só não há
identitário universalista, tolerante e pluralista, por incompatibilidade de
valores.
O assédio, a guerra permanente, a
reivindicação de superioridade moral mesmo quando se é a mão que brande o
chicote, a intimidação, nada disso é um exagero eventual, um caso isolado, um
episódio desimportante, mas o próprio método de militância identitária, em
coerência com as premissas que adota.
A complacência dos progressistas, que correm
para tudo mitigar, racionalizar, finda por reforçar esse comportamento ao
oferecer vexaminosos salvo-condutos, excludentes de ilicitudes e indulgências
para pecados futuros. Essa cumplicidade não apenas desmoraliza a crítica de
esquerda aos mesmos abusos praticados pelo "outro lado", como
termina por
ser corresponsável pelo "ódio do bem". Só que ódio do bem não
existe.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
3 comentários:
Excelente
Magnífico!
Verdade.
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