sábado, 27 de abril de 2024

Pablo Ortellado - A ciência e o populismo

O Globo

Uma das consequências nefastas do antibolsonarismo é que ele distorceu o entendimento do público sobre a ciência

O populismo antissistêmico que a direita abraçou é um bicho com que é difícil lidar. É anti-institucional, anti-intelectual, agressivo e selvagem — em resumo, não sabe usar os talheres. Quando chegou ao poder com Bolsonaro e passou a comandar a burocracia do Estado, recebeu acertadamente oposição. Mas, em geral, essa oposição tomou a forma de uma negação automática: se Bolsonaro recomenda de maneira imprudente, a atitude responsável passou a ser afirmar enfaticamente o contrário.

Em nenhum momento o controle do Estado pelo populismo foi mais crítico que durante a pandemia. Bolsonaro coordenava o SUS, controlava o Ministério da Saúde, a Anvisa e a Fiocruz, um pesadelo. Na ânsia de se contrapor às teses selvagens e absurdas dele sobre o coronavírus e a pandemia, deixamos de analisar ideias próximas às dele ou que poderiam ser identificadas com ele. Isso nos levou a muitos erros na condução da pandemia —erros sobre os quais ainda não nos debruçamos.

Em artigo no Nexo Jornal, o médico e professor da UFRJ Olavo Amaral chamou a atenção para um estudo da Universidade de Oxford, recentemente publicado, que avalia a eficácia da ivermectina contra a Covid-19. O estudo descobriu que a substância não previne hospitalizações ou mortes, mas reduz o tempo que o paciente experimenta os sintomas, de 16 para 14 dias em média. A ivermectina ficou tão associada ao “negacionismo” trumpista e bolsonarista que os autores do estudo provavelmente acharam que não era responsável destacar esse resultado, enfatizando, em vez disso, a ineficácia para reduzir hospitalizações e mortes.

Não foi o primeiro estudo que mostrou a eficácia da ivermectina. Pelo menos quatro outros grandes estudos desde 2022 mostraram que a substância tinha efeito mensurável contra a Covid-19. No artigo, Amaral lembra que, em 2021, antes da publicação dos estudos, a imprensa repetiu centenas de vezes, com o endosso de cientistas, que a ivermectina era “comprovadamente ineficaz”. Mas, se naquele momento não havia estudo sólido recomendando a ivermectina, também não havia nenhum estudo sólido provando sua ineficácia.

Tudo começou com a irresponsabilidade do presidente. Bolsonaro não dispunha de evidências científicas para recomendar ivermectina (ou cloroquina). Só que, para se opor a essa irresponsabilidade, cometemos o erro oposto. Afirmamos, equivocadamente, também sem boas evidências, que a substância era “comprovadamente ineficaz”.

Não foi só com a ivermectina que erramos. Como Bolsonaro se opôs à quarentena para proteger a atividade econômica, a imprensa e os cientistas o contestaram, afirmando (corretamente) que a quarentena era a posição cientificamente respaldada. Mas não ficamos aí. A necessidade de nos contrapormos com vigor à posição irresponsável de Bolsonaro nos impediu de discutir com tranquilidade e comedimento em que medida deveríamos adotá-la.

O antibolsonarismo bloqueou no debate público a discussão sobre a flexibilização da quarentena nas escolas. Quem quer tenha defendido a volta às aulas das crianças durante a pandemia foi automaticamente ignorado, tachado de bolsonarista. Não apenas não pudemos discutir na ocasião, como segue um tabu político revisitar criticamente nossa política abrangente de aulas remotas durante a pandemia.

Uma das consequências mais nefastas desse antibolsonarismo é ter distorcido o entendimento do público sobre a ciência. A ciência é feita de suposições cuja validade dura apenas até ser superada por entendimentos mais abrangentes. Em momentos de crise, quando o poder público lhe pede orientação, o que ela pode fazer é indicar o que parece ser o melhor caminho. A maneira correta de apresentar essa escolha é lembrar ao público que o caminho sugerido é apenas a melhor recomendação à luz das evidências disponíveis. Se não fizermos essa ressalva, e o caminho sugerido se mostrar depois equivocado, a confiança na ciência sairá abalada.

Durante a pandemia, não tomamos esse cuidado. Para nos contrapormos à irresponsabilidade populista, transformamos essa recomendação “à luz das evidências disponíveis” em afirmação categórica que se dizia científica, mas na verdade era apenas dogmática. A ciência precisa se rever. Precisa estar aberta à contestação —e não pode se furtar a investigar uma hipótese apenas porque um populista irresponsável a defendeu. O antipopulismo por princípio não faz bem para a ciência e não faz bem para a política pública.

 

4 comentários:

Daniel disse...

Excelente! E principalmente muito CORAJOSO! A maioria dos cientistas prefere ignorar seus possíveis erros, ainda mais quando estes podem afetar ou prejudicar seus dogmas.

Mais um amador disse...

Muito bom!
Também li o artigo do Nexo e sugiro a leitura.
À época, um dos colunistas a sugerir a volta dos estudantes às escolas, de forma organizada e planejada, foi Demétrio Magnoli. Pois bem.
O autor foi achincalhado e apedrejado, a torto e a direito, por todos aqueles que se colocavam como porta-vozes do discurso dito científico. Os resultados ( negativos ) para milhares e milhares de crianças e adolescentes não tardaram a chegar.
Enfim.

ADEMAR AMANCIO disse...

Crianças na escola na certa seria um desastre,penso eu.

meri angélica harakava disse...

Com toda sinceridade espero que arrependimento não mate. Pois já estamos tendo muitas mortes e sequelas, e isso atinge a todos direta ou indiretamente, não importa sua ideologia ou que decisões tomou nessa crise do vírus. Precisamos restabelecer o entendimento, a honestidade, e buscar a cura de todas essas mazelas.