domingo, 22 de setembro de 2024

Dorrit Harazim - A atração fatal

O Globo

Dobradinha foi formada em torno das carências, rancores e egos feridos de cada um

Elon Musk e Donald Trump formam, hoje, a dobradinha mais imprevisível e sinistra da cena política americana. Foi formada em torno das carências, rancores e egos feridos de cada um, podendo desembocar num projeto de poder inquietante se o candidato republicano à Casa Branca sair vencedor nas eleições de novembro próximo. Trata-se de uma atração fatal de conveniência, e ela é relativamente recente.

Desde que se tornou cidadão dos Estados Unidos em 2002, o visionário Musk, nascido na África do Sul, manifestava preferência por candidatos democratas. Até meados de 2022, tratava Trump com desdém por tentar fazer deslanchar sua candidatura em 2024.

— Não odeio o cara, mas é hora de ele pendurar o chapéu e contemplar o pôr do sol — chegou a postar na rede social mais influente da época, o antigo Twitter.

Reciprocamente, Trump distribuía insultos chulos ao dono da Tesla e da SpaceX.

O que fez o admirado inventor e cultuado guru do Vale do Silício abraçar com estridência um movimento tão retrógrado como o Make America Great Again (Maga) de Donald Trump? Para Charlie Warzel, que escreve sobre tecnologia e extremismo on-line na Atlantic e acompanha a trajetória de Musk desde 2010, parte da resposta está na errática compra do Twitter em outubro de 2022. Até então, Musk era cultuado como o Thomas Edison do século XXI, de genialidade ímpar. Esse encanto irrestrito foi quebrado quando ele torrou US$ 44 bilhões (mais US$ 2,5 milhões em closing costs) para a desastrada aquisição da rede social, transformou-a em geringonça ideológica e ainda por cima lhe deu o nome de X. As elites do poder acharam prudente tomar alguma distância do agora ex-mago.

Musk não aguentou a orfandade. Foi buscar admiradores e seguidores junto ao núcleo mais duro da internet: a extrema direita voraz. A partir daí, o homem mais rico do mundo tornou-se prisioneiro da audiência conquistada — para cada maluquice postada, seus 197 milhões de seguidores passam a demandar mais e mais. Desde que o Twitter virou X, por ali circulam fake news como a criação, nas Ilhas Malvinas, de campos de detenção para dissidentes políticos do governo britânico. Dias atrás, Musk também endossou a sugestão de que mulheres não devem participar de governos por não terem raciocínio crítico.

— Ele sempre foi um fio meio desencapado, com claros sinais de desdém pelo Estado de Direito, só que isso ficava encoberto por sua imagem de visionário — sustenta Warzel.

A aproximação com Trump se deu por etapas. No final de 2023, em entrevista ao New York Times, Musk admitiu pela primeira vez que não votaria no democrata Joe Biden.

— Vai ser uma escolha muito difícil — disse ele, sem mencionar Trump.

Em março de 2024, ocorreu o primeiro encontro entre os dois megaegos, em Palm Beach. Na ocasião, revelou o jornal, Musk abriu a carteira de bilionário, acenando com polpudo aporte, mas pediu reserva sobre o tête-à-tête. Foi somente em julho passado que saiu do armário.

— Apoio plenamente o presidente Trump e desejo sua rápida recuperação — anunciou em rede social minutos depois do atentado que atingira a orelha de Trump.

Aproveitou para também postar uma foto do republicano ferido e legendou:

— Desde Theodore Roosevelt, a América não tem um candidato tão valente.

A partir daí, deu liga; parecem feitos um para o outro. Numa interminável “entrevista” recente de duas horas que Trump concedeu a Musk pelo X, o ex-presidente logo tascou um elogio ao dono da plataforma:

— Campeão de demissões de funcionários.

Também gostou da ideia de, se eleito, nomear Musk para um hipotético Conselho de Eficiência Governamental — espécie de auditoria do funcionalismo público federal. Ao empreendedor caberia cortar gastos públicos com ímpeto semelhante à devassa que fez ao comprar o Twitter. Musk, por seu lado, declarou-se lisonjeado de “servir à América” caso surja alguma oportunidade e acrescentou que dispensaria salário, título e reconhecimento. Por ora, melhor nem falar no cipoal de conflitos de interesses que essa hipótese acarretaria, uma vez que SpaceX e Tesla recebem bilhões de dólares em contratos e subsídios do governo americano.

E se Kamala Harris derrotar Trump nas urnas em novembro? É então que a real influência e as verdadeiras ambições de Musk serão colocadas à prova. Ele poderá tanto exercer seu absoluto controle no X, para conter uma eventual insurreição da militância Maga, como dar espaço aos libertários do ódio. Respondendo à Atlantic sobre qual será seu papel, afirmou:

— A vontade do povo deve ser respeitada. Se houver dúvidas quanto à integridade das urnas, elas devem ser investigadas, não descartadas de antemão nem questionadas sem fundamento.

Que assim seja.

Em tempo, e tudo a ver: acaba de chegar às livrarias americanas (também no Kindle) o meticuloso e eletrizante “Character limit: how Elon Musk destroyed Twitter”, dos repórteres Kate Conger e Ryan Mac. Jornalismo investigativo dos bons.

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