À margem, o subúrbio é mais propício à criatividade, gerando no seu hibridismo desde os Mamonas ao medalhista olímpico
O ouro de Arthur Zanetti em Londres põe em evidência o subúrbio de que é originário e onde vive: nasceu em São Caetano, ali treina num clube comunitário, apoiado pela prefeitura, e mora em São Bernardo. Ninguém diria que por meio daquele atleta suburbano o País obteria nesta Olimpíada uma de suas escassas medalhas de ouro. Porque o subúrbio é o lugar de trabalhar e não o de brilhar, lugar da produção e não da ostentação.
Na metrópole paulistana, o subúrbio é um contraponto histórico em relação ao centro. Não é periferia, palavra do vocabulário político-ideológico que grita muito e diz pouco. Até porque, hoje, a periferia está no centro, na multidão de seus desamparados. Nos últimos 40 anos esse subúrbio ampliado vem protagonizando significativas mudanças políticas. Lula e Serra cresceram quase que à vista um do outro: Lula na Vila Carioca e Serra do outro lado do Rio Tamanduateí, na Mooca.
Em posições opostas, estão no centro do processo político brasileiro atual. O subúrbio também é lugar de sutil protagonismo nas mudanças sociais e culturais. Arthur Zanetti é filho da emergência tardia do Brasil do trabalho fabril, cujo eixo de referência é o oposto do eixo representado pelo centro da metrópole.A ética do subúrbio é a do trabalho; a do centro é a do consumo. O subúrbio tem uma cultura própria, que se manifesta no modo diferente de ser e de pensar dos moradores. De certo modo, essa cultura é produto e extensão dos hábitos da fábrica. Mas é também uma contracultura fundada na herança rural de sua população de imigrantes e de migrantes, que é uma cultura familista e comunitária e, não raro, religiosa.
Gente que há gerações veio para o trabalho das fábricas, mas que não renunciou aos valores da aldeia ou do sertão. Dessa duplicidade surgiu uma cultura híbrida, popular e identitária, conservadora, em que são socializadas as novas gerações. Isso pode ser observado tanto em Zanetti, em cujo êxito se destaca a família, quanto em casos como o do artista plástico João Suzuki, que veio do interior, mas viveu e ganhou fama em Santo André. Ou o do escultor Luiz Sacilotto, de Santo André, que faleceu em São Bernardo. Por estar à margem, o subúrbio é menos regulamentado e mais propício à criatividade. A alma japonesa do interiorano Suzuki desabrochou no imaginário oriental de sua pintura.
No subúrbio, as camadas profundas de sua consciência não encontraram travas para se manifestar esteticamente como expressão da duplicidade cultural tão própria dos filhos de imigrantes.A alma operária de Sacilotto, ex-aluno de escola industrial do Brás, ganhou forma em suas esculturas, artesania de oficina que se insurge para libertar o belo da retidão da linha de produção. Na medalha olímpica, Arthur e Arquimedes são um só. Filho atleta e pai serralheiro (e mãe esportista) se constroem reciprocamente: o pai, autônomo, faz os aparelhos dos ginastas, segundo a lógica das oficinas de fundo de quintal, contraponto poético da grande indústria, idílio de tantos operários suburbanos.
O mundo operário é um mundo em que as pessoas se completam, diverso do mundo do centro,em que as pessoas se repelem. Mãe, pai e filhos são um todo da concepção comunitária da vida. O subúrbio deu vida, também, a uma musicalidade popular que expressa peculiar rebeldia anticonvencional. Em Osasco e no ABC, a impensável ressurreição urbana do folclore rural das folias de reis, das folias do divino, do samba-lenço de Mauá e mesmo da Missa Caipira, de Marino Cafundó, celebrada no dia de Santo Antônio, em Osasco. O som da viola como memória. Resistência à música mercadoria sem sonho nem vida.
Emblemático foi o surgimento dos Mamonas Assassinas,em1995,em Guarulhos, grupo que morreu num acidente aéreo em 1996. Num desabafo, em janeiro de 1996, no Ginásio de Guarulhos lotado, onde haviam sido proibidos de se apresentar tempos antes, porque considerados ninguém, Dinho antecipava Barack Obama: "É possível, sim! Você pode, cara!" A música híbrida da banda juntou o rock e o sertanejo, retornou à ironia crítica e conservadora da música sertaneja de Cornélio Pires, nos anos 1920. Transformou o deboche e o falar errado numa linguagem. Como Lula, que agregou uma gestualidade de fábrica ao falar errado e criou uma nova linguagem política no Brasil, difícil de copiar justamente porque errada e não convencional. O Brasil pós-moderno e conservador está lentamente nascendo desses hibridismos insurgentes, dessas teimosias que ganham seu espaço no subúrbio.
José de Souza Martins - é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor de Subúrbio (Unesp)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
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