quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Sergio Fausto - Pós-eleições - o diálogo que interessa

- O Estado de S. Paulo

Já no dia seguinte ao pleito o ex-presidente Lula pôs seu bloco na rua com vista a 2018. Depois de dizer o diabo na eleição, ele ressurge conciliador em vídeos postados na internet, nos quais se dirige fundamentalmente às "classes médias" (velhas e novas) para recompor uma interlocução que se deteriorou nos últimos quatro anos. Dirige-se também à militância de seu partido, aconselhando-a a não se deixar levar pela "campanha de ódio contra o PT", um recado aos jovens radicalizados que emporcalharam a sede da Editora Abril. Enfim, um primor de astúcia política e desfaçatez (o ex-presidente chega a invocar a si próprio como exemplo de político que não se vale de ofensas para combater os partidos adversários).

Lula sabe que o discurso do "nós somos pelos pobres e eles pelos ricos" não o levará à vitória em 2018. Se o País retomar o crescimento, as novas "classes médias" voltarão a se expandir, com ainda maiores expectativas de ascensão social, e o número de pessoas realmente pobres se reduzirá a um contingente menos expressivo eleitoralmente. Se o crescimento continuar rastejando, as novas "classes médias" estarão frustradas em suas expectativas de maior ascensão ou iradas com a condição de "novos pobres", prontos a castigar o governo de turno.

Os desajustes produzidos pela "nova matriz econômica" são tantos que o cenário mais provável aponta para a continuidade do crescimento medíocre com inflação incômoda. A diferença está em que, de agora em diante, haverá aumento do desemprego. Acabou o vento de cauda da economia internacional e se esgotaram os motores do consumo público e privado, que puxaram o crescimento brasileiro nos últimos anos. Sobrou uma agenda de problemas provavelmente maior que a capacidade do "novo" governo de solucioná-los, agravados por uma crise política latente. Tem razão Lula quando diz: "Mais quatro anos como estes e estaremos perdidos" - frase citada na imprensa. A questão é que não será nada fácil tornar substancialmente melhor o próximo período presidencial.

Fiar-se nessa previsão, porém, é o maior erro que poderá cometer a oposição. O PSDB fez sua melhor campanha desde que deixou o poder, em 2002. O campo das oposições ampliou-se, com o PSB e a firme posição assumida por Marina Silva. Nunca o PT esteve tão perto de ser derrotado, nos últimos 12 anos. Mas a força política das oposições ainda é uma incógnita. Entre outras coisas, ela dependerá da articulação de um discurso que permita disputar, com vantagem, corações e mentes das classes médias baixas e intermediárias, que compõem o grosso do eleitorado. O mesmo contingente eleitoral em que o PT perdeu terreno nesta eleição e para o qual Lula começou a acenar mal terminada a apuração. Trata-se de pessoas e famílias que vivem tensionadas entre o medo de retroceder e a aspiração de ascender socialmente. Estão integradas ao mercado, mas não podem dispensar serviços públicos, como o fazem, em maior medida, as classes de renda mais alta. Nas novas classes médias, os jovens têm mais educação que seus pais. Muitos se endividaram para cursar o ensino superior privado. Terão de pagar a dívida em meio às incertezas de um mercado de trabalho bem mais apertado do que até aqui.

A oposição precisa falar para esse eleitor. Ele não tem dono. Não é movido por fúrias ideológicas, votou majoritariamente no PT nas duas eleições anteriores, mas nesta deu sinais de estar mudando de posição. O desafio é ampliar e consolidar esse movimento. Confrontar a propagação de inverdades é o primeiro passo nessa direção. Exemplo típico é a afirmação - repetida diversas vezes por Lula nos vídeos pós-eleitorais - de que antes do PT os "pobres estavam fora do orçamento do governo federal". Ora, quem pôs os pobres no orçamento federal - mais bem dito, quem fincou os alicerces dos direitos sociais para todos - foi a Constituição de 1988, ao estabelecer a saúde como direito universal e definir a educação fundamental como dever do Estado, além de prever a Lei Orgânica da Assistência Social. Tais conquistas continuariam letra morta não fosse o Plano Real, que debelou a hiperinflação. Quem pôs em marcha os programas para torná-las viáveis foi o governo FHC. Antes de chegar ao poder o mérito do PT, apesar de votar contra todas essas medidas, consistiu em organizar movimentos de reivindicação de direitos sociais e deslocar a competição política para a esquerda.

Tão ou mais importante que pôr os pingos nos is é elaborar um discurso político que supere a dicotomia entre o "econômico" (o mercado, essa entidade mal afamada no Brasil) e o "social" (produto da ação de um Estado benfeitor). Falta ainda articular um discurso que, sem ser populista, não seja tecnocrático; sem ser "de confronto", seja político, no sentindo de explicitar conflitos distributivos que se dão pela alocação de recursos públicos. Por que a campanha de Aécio Neves não politizou o tema da "bolsa empresário", por exemplo?

A tarefa das oposições é escrever uma partitura que convença o eleitor médio de que um Estado fiscalmente equilibrado, ativo, mas não discricionário, um mercado mais livre e mais bem regulado e uma sociedade civil autônoma são não apenas a melhor combinação possível para a realização de suas expectativas de progresso individual e familiar, mas também o caminho certo para um País mais rico e mais justo. Nessa partitura o meio ambiente deve ser uma nota dominante. Para dizer o óbvio, o "ambiental" é constitutivo do "social" e do "econômico". Agora num sentido mais radical do que jamais foi na história da humanidade, já que a natureza, em desarranjo provocado pelo homem, ameaça transformar definitivamente as condições de vida no planeta.

O mandato recebido das urnas é inquestionável. A hora não é de deploráveis passeatas. É da disputa de projetos, com respeito à democracia, patrimônio comum de todos nós.

*Sergio Fausto é superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University e membro do Gacint-USP.

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