- O Globo
• É preciso celebrar, com a memória de dom Paulo e Arraes, que a política, em nosso país, pode ser praticada por homens de bem, não importando de onde venham
Essa semana, no mesmo dia em que, aos 95 anos, morria dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo que enfrentou bravamente a ditadura militar no Brasil, comemorávamos o centenário de nascimento de Miguel Arraes, o mitológico líder popular de Pernambuco, uma vítima daquele regime, um resistente do terror. Vale a pena lembrar que, no Brasil, a política nem sempre foi praticada apenas por bandidos espertos ou meros oportunistas.
O que é preciso celebrar, com a memória desses dois brasileiros, é que a política, em nosso país, pode ser praticada por homens de bem, não importando de onde venham, de que partido sejam. E os homens bons deixam sempre boas lembranças.
O cardeal Arns, um franciscano nascido em Santa Catarina, formou suas ideias com o Concílio Vaticano II, o encontro oficial de um catolicismo que se voltara para os necessitados, para a justiça social e a fraternidade entre os homens, origem das comunidades eclesiais de base (as CEBs) e da Teologia da Libertação, o espírito de uma Igreja moderna e libertária.
Quando, em 1973, seu amigo e admirador Paulo VI nomeou dom Paulo cardeal, sua primeira iniciativa foi vender, por US$ 5 milhões, o suntuoso palácio episcopal. Os recursos obtidos foram investidos na construção de casas populares e centros comunitários, na periferia da cidade. Uma antecipação privada de programas como Minha Casa Minha Vida e CEUs, que só surgiriam muito depois, no século seguinte.
Miguel Arraes, cearense de Araripe, fez carreira de advogado em Pernambuco, onde migrou para a política pelas mãos de Barbosa Lima Sobrinho, grande reserva moral e intelectual de nossa vida pública na segunda metade do século XX. Eleito prefeito do Recife em 1960, o sucesso de sua administração o levou a eleger-se governador de Pernambuco em 1962, antes de terminar o mandato municipal. No governo do estado, Arraes se tornou, mais do que um herói, um mito popular.
Antes do golpe de 1964, seu governo fez usineiros e latifundiários aceitarem a extensão do salário mínimo aos trabalhadores rurais, através de um histórico Acordo do Campo que garantiu os direitos sociais dos camponeses, agora organizados em sindicatos, ligas e associações.
Foi por essa época que o conheci formalmente, levado ao Recife por minha militância no Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, no Rio de Janeiro. Seu governo criara o Movimento de Cultura Popular, inspirado na política de alfabetização de Paulo Freire, a “educação para a consciência”. Nesse encontro, Arraes nos contou que, quando jovem, ao mudar-se para o Crato, ainda no Ceará, encontrou, trancados num curral, flagelados presos e amarrados por tentarem fugir da seca indo para Fortaleza. “Era um horror difícil de compreender, nunca mais vi as coisas da mesma maneira”.
O mesmo horror que fazia com que o cardeal Arns enfrentasse as autoridades da ditadura, que insistiam em negar a existência de tortura e assassinato nas prisões arbitrárias, promovendo atos ecumênicos que revelavam a verdade, como no caso de Vladimir Herzog. A mesma revolta que sentiu quando, para impedir o progresso de suas ações a favor da população da periferia e contra a ditadura, o Papa João Paulo II dividiu sua Arquidiocese em cinco unidades distintas. Cobrado pelo corajoso cardeal brasileiro, que queria conhecer as razões da Cúria Romana para tal gesto, o papa polonês respondeu enfastiado: “A Cúria sou eu”.
Quando Arraes voltou anistiado de seu exílio na Argélia, juntou-se aos democratas de todas as tendências numa grande frente capaz de enterrar de vez a ditadura. Eleito governador de Pernambuco pela segunda vez, desde 1986 recupera sua liderança regional e nacional, servindo de poderosa referência dos novos tempos democráticos que o país queria viver.
Eu voltaria a vê-lo em 1983, durante as filmagens de “Quilombo”, filme do qual seu filho Augusto era um dos principais produtores. No momento em que Arraes entrou no estúdio, rodávamos uma cena em que o Zumbi toma a cruz de Cristo pela cabeça, tornando-a uma espada. Imaginei que, em algum lugar do universo, era esse o brasão de Miguel Arraes.
No mesmo dia desses dois eventos, uma terceira celebração enchia meu coração de tristeza. No Cemitério de São Francisco Xavier, participávamos da cerimônia de cremação de Ailton Silva Pereira, o mais antigo e querido dos funcionários de nossa produtora de cinema, que me acompanhava há mais de 20 anos de empenho e solidariedade. Incansável e sempre cortês, Ailton entendia de tudo e, quando não era o caso, tratava de logo aprender.
Como o cardeal Arns e Miguel Arraes, ele também era um homem bom, sua bondade viajava pelo ar de onde por acaso estivesse. Não importa saber o que pensam do mundo os homens bons, eles o são pela força mesma das coisas e para nos fazerem felizes. Como foram certamente esses três nobres As — Ailton, Arraes e Arns.
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Cacá Diegues é cineasta
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