O julgamento pode representar a volta de um tratamento não republicano a poderosos e ainda estender a falta de punição a criminosos de todo tipo
O julgamento de hoje, no Supremo, do pedido de habeas corpus da defesa de Lula, para que o ex-presidente não seja preso pelo fato de sua condenação pelo juiz Sergio Moro ter sido confirmada por unanimidade na segunda instância, no TRF-4, de Porto Alegre, é cercado por tensão e pressões.
Isso porque a sessão da Corte pode ser um dos marcos — para o bem ou para o mal — em todo este processo de enfrentamento da corrupção pela Justiça, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, cuja primeira vitória de peso foi o julgamento do mensalão petista pelo STF, iniciado em 2012 e concluído com a condenação de políticos no poder. De grande ineditismo no Brasil.
O aspecto especial da sessão de hoje é que a prisão a partir de condenação na segunda instância é jurisprudência em vigor na Corte, mas, por manobra de ministros, o julgamento pode ir além do caso específico de Lula e fazer recuar este próprio entendimento do STF.
Caso isso ocorra, a Corte, por maioria de votos, retornará à norma que vigorou apenas entre 2009 e 2016, a partir de uma leitura estreita da Constituição pela qual a sentença começará a ser aplicada apenas depois de esgotados todos os recursos, o que significa, na prática, consagrar a impunidade. Principalmente de réus abastados, capazes de contratar advogados especialistas em explorar as infindáveis possibilidades de se protelarem processos no Brasil, até a prescrição dos crimes. Este é o perfil clássico do corrupto, do corruptor e do barão do crime organizado.
Se o julgamento beneficiar apenas Lula, ficará consagrado o retrocesso antirrepublicano de o sistema judiciário brasileiro, por meio da mais alta Corte, proteger os poderosos da política. Caso, além disso, vença o grupo na Corte que deseja, numa interpretação conveniente da Carta, permitir a volta de todos os possíveis recursos ao condenado em segundo grau, será o mais certeiro golpe na Lava-Jato e em qualquer outra ação de Estado contra criminosos de colarinho branco.
E como a lei “vale para todos”, também serão beneficiados criminosos comuns que já cumprem pena a partir da segunda instância: homicidas, assaltantes, pedófilos etc. O que foi alertado pelo juiz Sergio Moro em recente programa “Roda Viva”, da TV Cultura.
A relevância da sessão de hoje justificou que a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, fizesse um pronunciamento, na segunda-feira, para pedir “serenidade” às forças políticas e ideológicas que se chocam em torno do julgamento.
Coube à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, alertar ontem que, apenas no Brasil, o conceito de presunção de inocência passou a ser entendido como a exigência de a sentença ser válida só se passar por quatro instâncias — uma jabuticaba jurisdicional.
No entendimento da procuradora-geral, “isso aniquila o sistema de Justiça exatamente porque uma Justiça que tarda é uma Justiça que falha”. E será num momento em que o país mais precisa dela.
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