A
política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de
Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada
da terceira campanha de Canudos
Uma
das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de
muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela.
A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56
milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de
Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da
Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos
recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762
mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time
das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam,
também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba
(339 mil).
Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.
A
conta da pandemia, do ponto de vista fiscal, ainda vai chegar, mas ninguém mais
pode ignorar a gravidade do problema social que o Brasil enfrenta,
principalmente, as elites econômicas do país. As desigualdades se manifestam em
todos os seus aspectos — econômico, social, cultural, étnico e de gênero — e
não será a prorrogação do auxílio emergencial que resolverá o problema. É
inviável uma política de renda mínima sem um projeto de desenvolvimento, sem
política industrial e de comércio exterior, sem reforma tributária e
administrativa, sem investimento em ciência e tecnologia, em habitação,
transportes e, principalmente, educação. Acontece que, até agora, o governo
federal pautou-se pela omissão ou o improviso nas políticas sociais.
A
política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de
Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada
da terceira campanha de Canudos. O presidente da República sempre se colocou ao
lado dos que não querem se vacinar, mesmo depois de os principais líderes
mundiais darem o exemplo se vacinando. É o principal responsável pelo
desmantelo do Ministério da Saúde na condução da política epidemiológica.
Agora, Bolsonaro resolveu defender a compra e a distribuição de vacinas por empresas
privadas, entre elas, a Petrobras e a Vale, para imunizar seus funcionários,
furando a fila do Programa Nacional de Imunização, para manter a atividade da
economia. A doação de metade das vacinas para o Sistema Único de Saúde (SUS)
legitimaria o privilégio. Teremos a vacina dos camarotes, para usar uma
expressão do meu xará Luiz Carlos Rocha, advogado de Curitiba, enquanto a
“pipoca” espera a vez nas filas do SUS, devido ao descaso e às trapalhadas do
general Pazuello na Saúde.
Acontece
que a Lei de Murici pode ser a senha para um desastre anunciado, como na
retirada de Canudos. Tudo começou quando o sanguinário coronel Moreira Cezar,
no dia 3 de fevereiro de 1897, mudou subitamente de ideia e optou pelo ataque
imediato, em vez do cerco a Canudos. O arraial foi duramente castigado pela
artilharia. As forças do Exército conseguiram invadir o arraial e conquistar
algumas casas. Foram, contudo, obrigadas a recuar, devido à pouca munição. Após
cerca de cinco horas de combate, Moreira César foi mortalmente ferido no
ventre, quando se preparava para ir à frente de batalha incentivar a tropa.
O comando foi transferido ao coronel Pedro Tamarindo, que decidiu recuar, após sete horas de combate. Moreira César agonizou 12 horas, ordenando que Canudos fosse, uma vez mais, atacado. Em reunião de oficiais, porém, fora decidida a retirada, dado o grande número de feridos, numa marcha de 200 quilômetros até Queimada. Atacada incessantemente pelos jagunços, a tropa debandou. Tamarindo foi morto no Córrego dos Angicos. Seu corpo foi deixado no campo de batalha. Acabou empalado num galho de angico pelos jagunços. A primeira favela do Rio de Janeiro foi formada pelos soldados desmobilizados após a Guerra de Canudos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário