quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Míriam Leitão - O confuso caso da vacina particular

- O Globo

As empresas que não quiseram participar da compra das vacinas ficaram preocupadas com o preço. Se aceitassem seguir com a ideia, iriam inflacionar o produto, porque ele custa cinco vezes mais do que o valor pelo qual a AstraZeneca está negociando. O outro motivo do racha é que algumas companhias queriam doar integralmente. O objetivo era ajudar o SUS neste momento de crise de suprimento. E existem problemas legais.

Há outras divisões, segundo empresários. A iniciativa corre o risco de ficar governista demais, até porque o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, quer tomar a frente.

— O Skaf está totalmente alinhado com o governo, que politizou muito essa questão e nosso interesse era ajudar o Brasil — me disse um deles, falando do seu desconforto.

Ontem, depois que o plano deu sinais de fracasso, Skaf disse que as empresas só comprariam o que não fosse oferecido ao governo. O fato é que existem outros movimentos de empresários agindo de forma mais discreta e com mais interesse público neste momento de crise aguda. O objetivo é ter todos os grupos prioritários vacinados até agosto. Mas gostariam de duas coisas.

— Não queremos entrar na briga política e não queremos passar a ideia de que estamos fazendo isso para proteger apenas nossos funcionários, numa espécie de grande fura-fila. O preço complicou ainda mais porque estaríamos inflacionando a vacina e legitimando intermediários que desconhecemos. Além disso, a Europa está tendo problemas para receber essas vacinas — disse um dos executivos cuja empresa saiu do grupo.

Um empresário que participou das discussões disse que foi surpreendido ontem quando o presidente Bolsonaro, antes que houvesse concordância no setor privado sobre o que fazer, tomou partido de um dos lados, exatamente o que queria entregar ao governo apenas metade das doses compradas. Num encontro do Credit Suisse, Bolsonaro anunciou que já havia concordado com essa compra de 33 milhões de doses.

Os empresários quando decidiram se mobilizar para a compra de vacinas tinham esperança de ajudar, como têm feito desde o começo desta pandemia com as suas doações.

Uma parte da elite empresarial está convencida de que o país tem que se proteger como um todo. Outro grupo quer vacinar seus funcionários e contribuir com o governo, doando metade das doses importadas. Está errado esse segundo grupo. Não se salva uma parte da população — no caso trabalhadores do setor formal da economia — quando está havendo uma tragédia deste tamanho. A única atitude coerente seria adquirir para doar. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse em dezembro que não poderia haver “vacinação paralela” no país, mas o governo avisa que enviou carta à AstraZeneca liberando a compra. Já a farmacêutica nega estar negociando com companhias brasileiras.

Do ponto de vista legal, a compra pelas empresas é controversa. Daniel Wang, professor de Direito do Ibre/FGV e especialista em direito da saúde, diz que a vacina emergencial é regulada por uma Resolução de Diretoria Colegiada da Anvisa e que a preferência é do governo federal. Dessa forma, não haveria proibição se o governo abrisse mão da compra. Mas admite que o tema poderia ser judicializado. O epidemiologista José Cássio de Moraes, professor da faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que se a vacina é aprovada apenas para uso emergencial ela tem que ser destinada ao setor público, especialmente em contexto de escassez de doses em uma pandemia. Mas diz que o principal entrave, na sua visão, não é legal, mas ético e até mesmo político.

— É um absurdo que se faça concorrência com o setor público e as empresas contribuam para aumentar o preço da vacina. Não acho que isso vá adiante, porque o laboratório poderia ser processado por outros países que financiaram as pesquisas e agora correm o risco de sofrer atraso na entrega das doses, como acontece na Europa — afirmou.

Esse capítulo do setor privado na compra de vacinas é apenas um no meio de uma grande confusão feita por Bolsonaro na gestão da trágica crise que infelicita o Brasil. O presidente da República subestimou a pandemia, sabotou os esforços pela vacina, nomeou um ministro da Saúde para lhe bater continência. O general Pazuello deve sim ter sua gestão investigada, mas o presidente é o primeiro responsável por todos os erros do governo que elevaram o número de mortes de brasileiros

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