O Estado de S. Paulo
Uma vez penalizações como as previstas na
reforma tributária tendo começado, não há mais limites em sua abrangência
No século 18, Bernard de Mandeville publicou um livreto de grande repercussão na época, A Fábula das Abelhas. Trata-se de uma espécie de alegoria tendo como pano de fundo a ação dos reformadores religiosos ingleses, que pretendiam reformar o Estado impondo suas crenças e suas formas de comportamento. Procuravam obrigar as pessoas a seguirem os mesmos valores religiosos relativos a gostos e atitudes, numa versão daquela época do que hoje chamaríamos de politicamente correto. As roupagens são diferentes, a essência é a mesma, assim como o alvo: suprimir a esfera da liberdade individual em nome de supostos valores mais “revolucionários” e ditos conforme os casos, em linguagem atual, de “progressistas”. No assunto em pauta, eles se voltaram contra uma sociedade de tipo hedonista – atualmente poderíamos dizer de consumo –, pois seria a representante de valores deturpados ou perversos.
No Brasil atual, num dos fatiamentos
propostos como sendo uma reforma tributária, aparece a justificativa de que se
trataria de um “imposto do pecado”, algo que, por isso mesmo, deveria ser pago,
como se os impostos vigentes para estes produtos, já elevados, não bastassem.
Como se trata de uma definição abrangente, os produtos que aí entrariam
dependeriam do arbítrio dos que assim os definem. Tabaco e bebidas alcoólicas
são hoje os candidatos naturais, sendo já seguidos por produtos com alta
dosagem de açúcar e, igualmente, carnes, estas últimas sendo objetos de ambientalistas.
Campanhas já se desenvolvem contra esses diferentes produtos, podendo culminar
num aumento de tributação de todos.
São tidos por comportamentos pecaminosos ou
politicamente incorretos, como se as pessoas não tivessem liberdade de escolha
do que consideram como um prazer ou bem seu. No caso do tabaco e, mais
recentemente, de bebidas alcoólicas, refrigerantes e guloseimas, há muito tempo
os indivíduos sabem de seus efeitos sobre a saúde, tendo o Estado multiplicado
as ações nesse sentido. E, apesar disso, pessoas continuam fumando ou bebendo.
A cachaça, em particular, é um “bem nacional”, uma imagem de marca! Se isso
ocorre, por óbvio, é fruto de uma escolha individual, não tendo o Estado nada
que ver com isso. Se as pessoas também não querem fumar, comer ou beber, é um
direito delas. Cada um exerce, assim, o seu direito de escolha, sem que isso
signifique uma opção entre “virtuosos” e “pecaminosos”, entre politicamente
“corretos” e “incorretos”.
Na Fábula de Mandeville, os reformadores
religiosos e morais passaram a condenar todo comportamento e crença que
consideravam baseados na cobiça, no egoísmo, no prazer e no luxo. Isso é mais
ou menos equivalente a contrariar a natureza humana, visto ser esta
consideração depreciativa nada mais do que uma condenação moral baseada em
outros pressupostos ideológicos. Alguém em sã consciência seria contra a
satisfação do eu, do prazer que cada um extrai do que considera um bem para si?
Alguém em sã consciência apregoaria que as pessoas deveriam agir contra a realização
de seus desejos? Uma sociedade que seguisse um tal padrão obrigatório de
austeridade seria uma sociedade voltada contra a própria natureza humana, tendo
como consequência as mais diferentes formas de perversão ou, do ponto de vista
político, de autoritarismo. Até quando deveremos suportar tais representantes
das “virtudes”?
O resultado foi o de que estes
reformadores, uma vez tendo conquistado o Poder, começaram a inviabilizar os
setores produtivos tidos por “pecaminosos”, seja diretamente, seja indiretamente.
Alta tributação e ações indenizatórias, por exemplo, promovidas pelo Estado,
terminam tendo como objetivo real, para além do palavrório acerca da saúde e da
virtude, a inviabilização de inteiros setores produtivos, destruindo toda a sua
cadeia, produzindo desemprego, fechamento de empresas e, inclusive,
prejudicando a agricultura familiar e cooperativas. O grande perigo consiste em
que, uma vez penalizações deste tipo tendo começado, não há mais limites em sua
abrangência, visto estarem baseadas em crenças que têm como objetivo impor
padrões de comportamento, ditos de “saúde” ou “virtuosos”.
Na abordagem crítica de Mandeville,
aprofundando ainda o que era tido por essencial, em contraste com o
inessencial, luxuoso ou supérfluo, a sociedade começou a obedecer a um mesmo
padrão de conduta, logo, de produção e de consumo, tendo como resultado a miséria
generalizada. No início, as pessoas acreditaram naqueles “virtuosos”, nos
representantes do politicamente correto, deram ganho de causa às suas demandas
e, posteriormente, foram vítimas de suas consequências. Entre elas, o
empobrecimento, o autoritarismo dos governantes e a abolição da própria
liberdade de escolha. Acreditaram estar exorcizando o pecado e se tornaram
reféns de políticos inescrupulosos que se arvoravam em representantes do “bem”
– no nosso caso, daquilo que estimam ser a saúde, como se esta não fosse também
resultado da liberdade de escolha.
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