segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Denis Lerrer Rosenfield*: A fábula do pecado

O Estado de S. Paulo

Uma vez penalizações como as previstas na reforma tributária tendo começado, não há mais limites em sua abrangência

No século 18, Bernard de Mandeville publicou um livreto de grande repercussão na época, A Fábula das Abelhas. Trata-se de uma espécie de alegoria tendo como pano de fundo a ação dos reformadores religiosos ingleses, que pretendiam reformar o Estado impondo suas crenças e suas formas de comportamento. Procuravam obrigar as pessoas a seguirem os mesmos valores religiosos relativos a gostos e atitudes, numa versão daquela época do que hoje chamaríamos de politicamente correto. As roupagens são diferentes, a essência é a mesma, assim como o alvo: suprimir a esfera da liberdade individual em nome de supostos valores mais “revolucionários” e ditos conforme os casos, em linguagem atual, de “progressistas”. No assunto em pauta, eles se voltaram contra uma sociedade de tipo hedonista – atualmente poderíamos dizer de consumo –, pois seria a representante de valores deturpados ou perversos.

No Brasil atual, num dos fatiamentos propostos como sendo uma reforma tributária, aparece a justificativa de que se trataria de um “imposto do pecado”, algo que, por isso mesmo, deveria ser pago, como se os impostos vigentes para estes produtos, já elevados, não bastassem. Como se trata de uma definição abrangente, os produtos que aí entrariam dependeriam do arbítrio dos que assim os definem. Tabaco e bebidas alcoólicas são hoje os candidatos naturais, sendo já seguidos por produtos com alta dosagem de açúcar e, igualmente, carnes, estas últimas sendo objetos de ambientalistas. Campanhas já se desenvolvem contra esses diferentes produtos, podendo culminar num aumento de tributação de todos.

São tidos por comportamentos pecaminosos ou politicamente incorretos, como se as pessoas não tivessem liberdade de escolha do que consideram como um prazer ou bem seu. No caso do tabaco e, mais recentemente, de bebidas alcoólicas, refrigerantes e guloseimas, há muito tempo os indivíduos sabem de seus efeitos sobre a saúde, tendo o Estado multiplicado as ações nesse sentido. E, apesar disso, pessoas continuam fumando ou bebendo. A cachaça, em particular, é um “bem nacional”, uma imagem de marca! Se isso ocorre, por óbvio, é fruto de uma escolha individual, não tendo o Estado nada que ver com isso. Se as pessoas também não querem fumar, comer ou beber, é um direito delas. Cada um exerce, assim, o seu direito de escolha, sem que isso signifique uma opção entre “virtuosos” e “pecaminosos”, entre politicamente “corretos” e “incorretos”.

Na Fábula de Mandeville, os reformadores religiosos e morais passaram a condenar todo comportamento e crença que consideravam baseados na cobiça, no egoísmo, no prazer e no luxo. Isso é mais ou menos equivalente a contrariar a natureza humana, visto ser esta consideração depreciativa nada mais do que uma condenação moral baseada em outros pressupostos ideológicos. Alguém em sã consciência seria contra a satisfação do eu, do prazer que cada um extrai do que considera um bem para si? Alguém em sã consciência apregoaria que as pessoas deveriam agir contra a realização de seus desejos? Uma sociedade que seguisse um tal padrão obrigatório de austeridade seria uma sociedade voltada contra a própria natureza humana, tendo como consequência as mais diferentes formas de perversão ou, do ponto de vista político, de autoritarismo. Até quando deveremos suportar tais representantes das “virtudes”?

O resultado foi o de que estes reformadores, uma vez tendo conquistado o Poder, começaram a inviabilizar os setores produtivos tidos por “pecaminosos”, seja diretamente, seja indiretamente. Alta tributação e ações indenizatórias, por exemplo, promovidas pelo Estado, terminam tendo como objetivo real, para além do palavrório acerca da saúde e da virtude, a inviabilização de inteiros setores produtivos, destruindo toda a sua cadeia, produzindo desemprego, fechamento de empresas e, inclusive, prejudicando a agricultura familiar e cooperativas. O grande perigo consiste em que, uma vez penalizações deste tipo tendo começado, não há mais limites em sua abrangência, visto estarem baseadas em crenças que têm como objetivo impor padrões de comportamento, ditos de “saúde” ou “virtuosos”.

Na abordagem crítica de Mandeville, aprofundando ainda o que era tido por essencial, em contraste com o inessencial, luxuoso ou supérfluo, a sociedade começou a obedecer a um mesmo padrão de conduta, logo, de produção e de consumo, tendo como resultado a miséria generalizada. No início, as pessoas acreditaram naqueles “virtuosos”, nos representantes do politicamente correto, deram ganho de causa às suas demandas e, posteriormente, foram vítimas de suas consequências. Entre elas, o empobrecimento, o autoritarismo dos governantes e a abolição da própria liberdade de escolha. Acreditaram estar exorcizando o pecado e se tornaram reféns de políticos inescrupulosos que se arvoravam em representantes do “bem” – no nosso caso, daquilo que estimam ser a saúde, como se esta não fosse também resultado da liberdade de escolha.

*Professor de filosofia na UFRGS

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