O Globo
Nas eleições desse ano, vamos afastar
Bolsonaro de onde se encontra. Mas levaremos muito tempo para recolocar o
Brasil no rumo que lhe cabe, carnavalesco e cordial
Antonioni já era um grande mito do cinema,
quando o conheci em Roma. Depois de alguns encontros casuais acabei convidado a
ir à sua casa, jogar conversa fora. Lá, achei que conheceria Monica Vitti, já pelo fim de um casamento que produzira,
além de felicidade conjugal, um dos mais extraordinários ciclos do cinema
moderno europeu: “Aventura”, “A noite” e “O eclipse”. Depois, Antonioni
apareceu pelo Brasil no início dos anos 2000 com uma nova e jovem mulher, e
jantou uma noite em minha casa, quando lhe apresentei a Caetano Veloso e
mostramos suas canções a ele.
Em Roma, eu havia me perturbado com a
ausência de Monica Vitti na conversa. Como não tinha intimidade para perguntar
por ela, esperei fingindo desinteresse. Finalmente, ela foi buscar alguma coisa
na sala, acho que um cinzeiro. A cabeça sempre baixa, Monica Vitti entrou e
saiu do cômodo sem olhar e muito menos falar com ninguém.
Nunca mais a vi e Antonioni acabou morrendo em 2007, aos 94 anos de idade. Ele ainda defendeu, num Festival de Veneza, o filme mal compreendido de Glauber Rocha, “A idade da Terra”, de 1980. Separada de Michelangelo, Monica Vitti se casara com Roberto Russo, também cineasta, na companhia de quem viveu o resto de sua vida, morrendo essa semana vitima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) agravado pelo Mal de Alzheimer. Ou vice versa, não sei.
Claro que Bolsonaro não vai manifestar
nenhum sentimento pela passagem da grande atriz. Assim como não havia se
manifestado por ocasião do desaparecimento de tantos brasileiros inesquecíveis
desde Aldir Blanc, nessa maldição do vírus que nos consome e do insensível
negacionismo genocida do poder público. O Brasil, de quem sempre se enalteceu a
cordialidade, que foi sempre o país dos que sabem rir de tudo, talvez esteja
usando o horror desses tempos para revelar a fragilidade da versão. A pressão
da pandemia nega a confirmação de valores “humanistas”, a favor de um arranjo
mal equilibrado entre “bem” e “mal”, considerando as circunstâncias como razão
primeira de nosso comportamento.
Para nós, que sempre tivemos prazer em
divulgar o caráter carnavalesco do país, são dolorosas a perseguição e a
censura social a sambas e marchinhas que reproduzem nossa cultura de uma época.
Sempre curtimos essas canções, deixando o comportamento social do passado no
passado, como lembrança do que o mundo já foi.Shakespeare, Dostoiévski, Proust,
essa gente já cometeu esses mesmos enganos, sem que fôssemos obrigados a
cancelar peças, romances, poemas. Hoje, eu não deixaria de cantar nunca que “o
teu cabelo não nega”, “qual é o pente que te penteia”, “branco é branco, preto
é preto, mas a mulata é a tal”, esses elogios enviesados, tão avançados em
comparação ao resto do mundo.
O que não podemos admitir é o que três
maloqueiros acabam de fazer com o filho de refugiados congoleses, num quiosque
na Barra da Tijuca. Não há o que possa justificar punição como essa, mesmo que
Moïse estivesse em busca de uma cerveja ou qualquer outro produto a que ele não
tinha direito, como declaram os acusados. Cada paulada das que vimos na
televisão bateu em nossas costas, cabeças e corpos, admitindo que há tempos não
somos mais o país do carnaval e da cordialidade.
Está certo, nem tudo é culpa de Bolsonaro. Mas foi seu governo de violência, bagunça agressiva e restrições que preparou esse pesadelo. Nas eleições desse ano, vamos afastá-lo de onde se encontra. Mas levaremos muito tempo para recolocar o Brasil no rumo que lhe cabe, carnavalesco e cordial. A grande tarefa dos democratas brasileiros será a de fazer superar esse mau sonho e se preparar para refazer o que eles destruíram — refazer o Brasil para que possamos mudá-lo, em direção ao espírito dos costumes e do comportamento com que nossas canções sempre sonharam.
Um comentário:
Bolsonaro não inventou a violência contra as ''minorias'',claro,mas ele e sua gente reforçaram.
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