quinta-feira, 2 de junho de 2022

Maria Cristina Fernandes: Pobres contra Bolsonaro

Valor Econômico

Com ódio, fome e pressa, o Brasil emparedou o bolsonarismo e o deixou sem saída à vista

Os mais pobres declararam oposição ao governante de plantão. Nunca o haviam feito de maneira tão acachapante a esta altura da campanha. Bolsonaro conseguiu ganhar em 2018 sem o voto majoritário deles. Feito inédito. O problema é que, ao aumentar a pobreza do país que governou, o próprio presidente colocou tijolos a mais no muro que agora parece intransponível. Com ódio, fome e pressa, o Brasil emparedou o bolsonarismo. Cedo demais?

Aos números - do Datafolha, que permite a comparação desde 2002, e com a intenção de votos espontânea, a menos poluída de todas. É quando o eleitor, sem pegadinhas e listas por ordem alfabética ou escalafobética, responde de bate pronto em quem vai votar. Nesta última rodada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 38% e o presidente Jair Bolsonaro, 22%. Nunca houve, nos últimos 20 anos, uma rodada do instituto que tenha detectado uma intenção de voto espontânea tão polarizada - e tão alta para o líder - a esta altura do campeonato.

O eixo que divide os dois polos é renda. E isso não poderia estar mais claro. Entre aqueles que ganham até dois salários mínimos, Lula vai a 43% e Bolsonaro cai para 15%. Está melhor que em 2018, quando tinha metade disso entre os mais pobres no início de junho. O problema, para Bolsonaro, é que o PT está muito melhor.

Lula elegeu-se em 2002 com uma vantagem maior entre os mais aquinhoados e de maior instrução. Mudou este perfil eleitoral em 2006, quando pôs o Bolsa Família na vitrine. De lá pra cá, os mais pobres nunca mais deixaram de ser o abre-alas do PT. Mas nunca haviam tomado a avenida como agora. Bolsonaro reverterá? Difícil. Tentou o Auxílio Brasil, mas a outra rodada do Datafolha já havia mostrado que sua avaliação é até pior entre os beneficiários.

E se o governo resolvesse despejar gasolina de helicóptero? Paulo Guimarães, professor de estatística aposentado da Unicamp, está na estrada desde 1989, quando fez a campanha de Leonel Brizola. Este ano, já fez rodadas qualitativas para quase todos os candidatos, é o analista de pesquisas da campanha à reeleição de Rodrigo Garcia (PSDB-SP) e tem sido consultado por Sidônio Pereira, marqueteiro de Lula e seu parceiro no atendimento ao governo da Bahia.

“Já passou do ponto de retorno”. Primeiro porque o governo não tem como dar um subsídio que faça diferença. A carência é tamanha que as pessoas que tiveram acesso ao vale-gás continuam a cozinhar com lenha e usaram dinheiro para comprar comida. E depois porque estão com ódio mesmo. Nos grupos que conduz, Guimarães só ouve xingamento. Quanto mais pobres e mais precarizados, mais xingam. Na foto do Datafolha isso aparece no cruzamento que contrasta a intenção de voto espontânea para Bolsonaro entre os assalariados sem registro (18%) com aquela colhida entre empresários (49%).

Por mais que temas como a morte, sob tortura da Polícia Rodoviária Federal, de Genivaldo Santos, tenham mobilizado a opinião pública, Guimarães não vê impacto da violência policial sobre o voto. Quanto mais endêmico o problema, menor capacidade tem de pautar o eleitor. A violência seria um desses. As polícias nunca pegaram leve no Brasil. Ninguém vai acreditar se alguém prometer que vai controlá-las. O que faz a cabeça do eleitor é ser desprovido de algo de que tinha ou vice-versa. Quando o adversário é aquele que já ofereceu algo que hoje lhe falta, aí o incumbente está perdido. Por isso, o foco de Lula é na renda.

É da renda - e dos eleitores de Ciro Gomes - que Guimarães vê a chance de a fatura ser liquidada no primeiro turno. Diz que, da mesma forma que em 2018, quando Bolsonaro fez escada nos costumes para tentar evitar a segunda rodada, Lula tem de encontrar a urgência da vez. As pesquisas sugerem que a encontrará na desesperança do eleitor face à melhoria de vida sob o bolsonarismo.

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e diretor do Quaest, Felipe Nunes vê menos chances de a disputa ser encerrada no primeiro turno. Não apenas pelo histórico das disputas presidenciais - apenas duas (FHC I e FHC II), de oito, se encerraram no primeiro turno - como pela resiliência daquele quarto do eleitorado que, nos seus levantamentos, ainda resistem a Lula ou Bolsonaro.

À raiva pelo empobrecimento soma o medo da violência que, desta vez, trocou de sinal. Em 2018 uma das alavancas de Bolsonaro foi o impacto da criminalidade sobre pobres e ricos, indistintamente. Desta vez, Nunes vê indícios de que o medo permanece, mas é da polícia e vem dos mais pobres. Por isso, a truculência da PRF ressoou.

Nunes reitera a radicalidade da polarização dos eleitores que já se definiram mas não a circunscreve ao viés de renda. De fato, nos cruzamentos do Datafolha, a eleição está polarizada de A a Z. Basta ver a vantagem de Lula sobre Bolsonaro na intenção de voto espontânea entre eleitores com ensino fundamental (43% x 17%), mulheres (39% x 18%), do Nordeste (49% x 15%) e pretos (44% x 17%).

Essa polarização não parecia estar nos planos do PT que tenta afastar Lula de carimbos como “pai dos pobres” com a transversalidade de temas como a defesa da democracia. A julgar pelo que se vê no Datafolha, porém, a paternidade arrisca se estender às mulheres, aos eleitores de baixa escolaridade, aos pretos e nordestinos.

Nunes teme a extensão, no Brasil, para o fenômeno da “polarização afetiva” que, nos Estados Unidos, transformou democratas e republicanos, pró-vacina e antivacina, abortistas e não abortistas, pró-armas e antiarmas, de adversários em inimigos. Vê nesta divisão a semente para comportamentos autoritários.

A polarização mostrada pelo Datafolha, porém, sugere uma brecha para que o fenômeno não se repita aqui. A intenção de voto de Lula sobre Bolsonaro alarga-se, de fato, em determinados segmentos, mas o candidato petista não vai mal nos demais. Ganha também entre homens brancos. Apertado, mas ganha. Chega perto do presidente no Centro-Oeste, região mais chapa-branca, e está melhor entre os evangélicos do que o PT esteve em 2018.

O fosso maior, mesmo, é na renda. Em nenhum recorte, a diferença na intenção do voto lulista é tão grande quanto entre pobres e ricos. Visto que os primeiros são a maioria do eleitorado, a polarização favorece Lula. O que se eleva é o preço de um estelionato eleitoral em 2023. Mas esta é outra história. O que resta saber é o que Bolsonaro e seus sócios farão com indícios tão claros de um comportamento desfavorável do eleitor a quatro meses da eleição.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pois é,os mais pobres estão com mais medo da polícia que da criminalidade.