O Globo
Digo sempre que livrarias são pequenas
ilhas de civilização. Enquanto houver livrarias, haverá esperança
Meu amigo escritor e excepcional colunista
Sérgio Rodrigues lançou um novo romance, “A vida futura”, e me convidou para um
bate-papo de lançamento na Janela Livraria. Povo de livro fazendo vida
literária, certo? Nada de muito fora do comum, apenas um pequeno evento carioca
ali na esquina, para meia dúzia de pessoas.
Só que não.
A pandemia não acabou, mas estamos
retomando a vida aos poucos, e cada pouquinho que se retoma é intenso e
emocionante.
Pois foi assim no sábado.
A Janela é a livraria dos sonhos de todo
mundo que, um dia, sonhou em ter uma livraria e café: pequena, aconchegante,
com os livros escolhidos um a um, a prova viva de que sonhos podem se
materializar.
Casa cheia, cadeirinhas na calçada,
escritores e leitores misturados como num festival literário.
E aí, de repente, alguém nos avisou que a Fernanda Montenegro estava lá, em pé num cantinho. Como assim, em pé num cantinho? Sérgio e eu paramos a conversa e fomos lá recebê-la; a plateia a aplaudiu, como têm feito tantas plateias ao longo dos últimos o quê? 60, 70 anos? Com força, entusiasmo e genuína adoração.
Passado o alvoroço, Fernanda explicou que
não podia ficar muito tempo, porque está em cartaz no teatro XP Investimentos,
no Jockey, com o espetáculo “Nelson Rodrigues por ele mesmo”; e com isso
retomamos o papo.
Mas tenho certeza de que, naquele instante,
todos nós nos demos conta de que algo mágico e único estava acontecendo. Não
existem episódios isolados do seu contexto; ali, sem querer, apenas por
estarmos reunidos naquela tarde, naquela livraria, de forma tão íntima e espontânea,
compartilhávamos um momento de forte e discreta resistência política e
cultural.
Ninguém falou nisso, e nem precisava.
Política é mais do que gritar “Fora Temer!”
(alguém se lembra?). Política pode ser, e frequentemente é, a simples
constatação de que ainda há quem acredite numa terra boa e generosa.
Digo sempre que livrarias são pequenas
ilhas de civilização.
Enquanto houver livrarias, haverá
esperança.
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Fernanda é maior do que Fernanda.
Ela é a tradução concreta da expressão
“larger than life”, maior do que a vida — uma pessoa que transcende a sua
dimensão humana para se transformar em símbolo.
Quando as plateias prorrompem em aplausos
ao vê-la, não é unicamente a imensa atriz que reverenciam, mas o que ela passou
a significar com o tempo: a própria imagem da cultura.
Fernanda é a melhor visão que temos do
nosso país e de nós mesmos.
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E, por falar em melhor visão de nós mesmos:
eu tinha um convite para ir à live dos 80 anos de Caetano Veloso, mas precisei
recusar por causa de uma viagem. Assim, pela primeira vez na vida, peguei um
avião para Nova York — logo Nova York! — sentindo a vaga tristeza de saber que
tinha um programa melhor.
Ainda não assisti ao show, que já não será
live para mim, mas assisti, encantada, à sua repercussão.
Foi uma felicidade perceber que, apesar de
tudo, o Brasil que entende e que sabe festejar um dos seus maiores artistas
ainda resiste.
2 comentários:
"Enquanto houver livrarias, haverá esperança."
Enquanto houver Bolsonaros, haverá ameaças!
Nossa elite cultural nos enchem de orgulho,nossa elite econômica e política nos envergonham.
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