Folha de S. Paulo
Presidente articulou melhor que outros
políticos valores emergentes da sociedade
Eleições costumam ser encaradas como forma
de premiar ou punir o governo. O governante que melhora a vidas das pessoas
seria reeleito ou elegeria seu sucessor. Aquele que piorasse a vida da
população, não.
Em
que pese a derrota, é surpreendente o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro
(PL). A economia piorou, a fome voltou, as políticas públicas foram
desmanteladas, milhares
de pessoas morreram na pandemia por causa do comportamento do presidente e
o futuro foi hipotecado. Em circunstâncias normais, não estaria sequer no
segundo turno.
De onde vem a força de Bolsonaro? Alguns
dirão que a sociedade brasileira é intrinsecamente conservadora e, portanto,
preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. O capitão
reformado seria aquele que melhor representa esse ideário.
A conclusão me parece apressada e
superficial. Bolsonaro
não é conservador, muito menos representa os valores cristãos.
O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. Mudanças radicais são seu pesadelo, e toda a força política conservadora busca suavizar as mudanças, impedir os arroubos, as rupturas. O conservadorismo é, por essência, contrarrevolucionário.
Bolsonaro é um revolucionário de extrema
direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira.
Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa
sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade
de perfil.
O Brasil é o maior país católico do
mundo, mas
a força religiosa preponderante é a neopentecostal. Para grande parte
dos fiéis católicos, a identidade católica não é definidora das escolhas do dia
a dia, como é a neopentecostal.
Esta identidade condiciona todas as
decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. Sua
influência no comportamento dos brasileiros é muito maior. Ainda que
minoritária do ponto de vista estatístico, ela pesa muito mais do que a grande
maioria silenciosa e desarticulada.
Sobre
o segundo ponto, o Brasil depende cada vez mais do agronegócio. Seu
peso na economia tem sido crescente e acompanha a desindustrialização do país.
Essa força econômica emergente articula uma estética própria.
A vestimenta de gaúchos e sertanejos, tão
típica de nossa tradição rural, foi substituídas pela de caubói. O rodeio se
tornou o grande festival do país, e a música que mais toca nas rádios
brasileiras é uma espécie de country music cantada em português.
A posse e o porte de arma completam a
composição deste novo "homem do campo". A promoção dessa nova
estética é articulada pelo setor e difundida pelo país inteiro sob os slogans
"o agro é pop", "o agro é tech" e daí por diante…
Quanto ao último ponto, a população
brasileira está entre as maiores consumidoras de redes sociais do mundo. A
sociabilidade de grande parte de nossos compatriotas se dá primordialmente
através dos perfis de redes sociais. Somos aquilo que desejamos projetar em
nossos perfis. O
conhecimento foi substituído pela opinião, e o encontro na praça deu lugar à
aventura narcísica.
Bolsonaro soube articular muito bem esse
novo ambiente comunicacional com a identidade neopentecostal e a estética do
agro. Seu movimento se tornou o fio condutor dessas forças propulsoras e a
partir delas o capitão reformado construiu uma nova gramática política
desprendida da lógica do "bom governo".
O que está em jogo é derrubar a tradição
brasileira e substituí-la por uma nova visão de mundo. Para tanto é necessário
eliminar o "inimigo" —nomeado como "a esquerda", mas, na
realidade,
o bolsonarismo tem como alvo as construções sociais e institucionais de décadas
da sociedade brasileira.
O bolsonarismo representa uma ruptura
política e cultural com a tradição brasileira. Quem vota em Bolsonaro não o faz
por acreditar racionalmente que ele representará melhor seus interesses, mas
por representar suas opiniões. Trata-se de um voto exclusivamente identitário.
Enquanto essas forças forem as identidades
políticas preponderantes no país, o bolsonarismo seguirá ditando o ritmo da
política. Bolsonaro
perdeu neste domingo (30) nas urnas, mas o trabalho para derrotar o
bolsonarismo na sociedade será imenso.
*Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)
Um comentário:
Excelente artigo!
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