O Estado de S. Paulo
Estamos diante de uma comissão que vai usar
as imagens para que as diferentes versões se imponham. Há poucos debates no
horizonte, poucos documentos esclarecedores
A invasão do Capitólio, nos EUA, em 6 de
janeiro de 2021, inspirou uma comissão no Congresso americano que, por sua vez,
resultou num relatório de alguma repercussão no país. Num texto de 800 páginas,
Donald Trump aparece como o principal responsável pelo ataque.
Era de esperar que, após o 8 de Janeiro no
Brasil, também se formasse uma comissão com a tarefa de documentar um fato
histórico sem precedentes na nossa democracia.
Caminhos tortuosos nos levaram à CPI. No
princípio, o governo não a queria. Em tese, era um momento de acusar a extrema
direita e responsabilizar seus líderes, sobretudo os que afirmaram, sem provas,
que as urnas eletrônicas são viciadas. Mas para o governo a vida seguia seu
rumo: ao invés de olhar para trás, era preciso resolver questões cruciais do
futuro próximo – o arcabouço fiscal e a reforma tributária. Neste contexto, a
CPI do 8 de Janeiro era uma dispersão de energia.
Outro aspecto interessante: o autor do pedido de CPI é um deputado investigado precisamente por cumplicidade com o tríplice ataque de 8 de janeiro. Era evidente que o objetivo era, de certa forma, impor uma nova versão dos fatos, deslocando o governo da posição de vítima para a de responsável.
Na verdade, os bolsonaristas queriam
produzir a magia de invadir Congresso, Supremo Tribunal Federal e Planalto,
destruir o que encontraram pelo caminho e, em seguida, convencer o País de que
foi tudo um complô do governo. Seria preciso muita competência, de um lado, e
total apatia, do outro, para que os acontecimentos do 8 de Janeiro dessem esse
salto acrobático e caíssem de cabeça para baixo.
Houve um fator que o governo subestimou. O
8 de Janeiro aconteceu num momento especial de nossa história tecnológica.
Todos tinham smartphones para documentar o estrago. Os assaltantes filmaram, a
polícia filmou, os curiosos filmaram e as câmeras dos três prédios também
filmaram. São milhares de horas filmadas. Para quem vive o momento atual, era
evidente que essas imagens eram, de certa forma, o caminho real das
investigações, mas que também, numa época caracterizada pela pós-verdade, a
manipulação do material daria o controle das versões sobre os fatos.
As imagens do Planalto não foram divulgadas
nem analisadas transparentemente pelo governo. Acabaram vazando e, com isso,
precipitaram a queda do general Gonçalves Dias e a própria instalação da CPI.
De fato, os militares do Gabinete de
Segurança Institucional (GSI) se recusaram a combater os invasores e, com a desculpa
de gerir uma crise, mostraram-se gentis com eles. Deveriam ser afastados todos,
pois nenhum palácio presidencial do planeta cai sem resistência dos seus
defensores, a não ser que haja um golpe interno, mas ainda assim há resistência
de um setor leal.
Estamos, agora, diante de uma CPI que vai
usar as imagens para que as diferentes versões se imponham. Há poucos debates
no horizonte, poucos documentos esclarecedores.
O momento é outro. Haverá muitos
parlamentares com o telefone na mão, falando com suas bolhas, produzindo vídeos
curtos estimulando o confronto nas redes sociais. Essa é uma atividade que se
impôs no Brasil, sobretudo depois de 2018.
O interessante é que os fatos mesmo já são
quase todos conhecidos. Sabemos quem atacou, por que atacou, por quem foi
influenciado. Mas nada disso importa, sobretudo à extrema direita. Ela se
alimenta de uma fração da sociedade que já não se interessa mais em separar
fatos de fantasias.
Por isso a atividade política, talvez a
atividade pública de um modo geral, se move hoje num campo minado. É preciso
recuperar os fatos, fortalecer os argumentos, superar os equívocos, enfim,
trabalhar dentro das regras democráticas.
Mas, por outro lado, é preciso compreender
as novas variáveis do jogo. A transparência teria dado ao governo uma posição
muito mais cômoda, embora fosse preciso explicar a hesitação de seu ministro do
GSI e demitir todos os que não resistiram aos invasores.
Grande parte das batalhas se dá em torno de
imagens, memes e teorias conspiratórias. Exércitos de robôs se deslocam no
espaço virtual, invadindo corações e mentes, ocupando extensos territórios da
opinião. A tarefa de comunicar com clareza e exatidão se tornou mais necessária
porque, na verdade, só uma atmosfera caótica como essa transforma uma CPI num
incômodo para o governo atingido e motivo de excitação para as forças
agressoras.
Desde o princípio, as teses dos teóricos da
extrema direita – Steve Bannon entre eles – apontam o caminho do caos, a tática
de confundir e ofender não só adversários políticos, mas todos os que querem
profissionalmente apurar os fatos, confirmá-los com rigor.
Não é fácil encontrar uma tática correta
nesta confusão, mas ela precisa ser decifrada, como uma esfinge pronta para
devorar a democracia.
É obvio que é preciso muita luta. Mas,
nessas circunstâncias, a luta apenas não resolve se não for informada por muita
reflexão e coragem para inovar.
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