O Globo
A mera vontade das autoridades não será
suficiente para sanar a anarquia institucional provocada pela politização do MP
A sombra da Lava-Jato pairou sobre a
cerimônia de posse de Paulo Gonet.
O Ministério Público (MP) “não pode achar que todo político é corrupto”,
advertiu Lula,
pedindo-lhe que seja “o mais honesto possível, o mais duro possível, mas ao
mesmo tempo o mais justo possível”. O novo procurador-geral (PGR)
respondeu que “no nosso agir técnico, não buscamos palco, nem holofotes”. Tudo
isso faz sentido — mas passa longe da reforma indispensável.
Conduzidos por um impulso de idealismo ingênuo, os constituintes de 1988 desenharam os contornos de uma hidra, criando um Quarto Poder sem controle e atribuindo-lhe as mais amplas, genéricas e vagas funções. O MP ganhou, entre outras, a prerrogativa de proteção “de outros interesses difusos e coletivos” — o que significa tudo e qualquer coisa. Daí, bastou um passo para que jovens procuradores entusiasmados, institucionalmente livres de amarras legais, vestissem a fantasia de justiceiros reformadores da sociedade.
A politização do MP iniciou-se pela esquerda.
Já em 1991, nasceu um “partido de procuradores”, o Ministério Público
Democrático (MPD), associação criada dentro do MP “com o intuito de promover o
maior compromisso da justiça com o povo”. O MPD interpretou, mais ou menos em
linha com o PT, o conteúdo dos tais “interesses difusos e coletivos”. Demorou,
mas, em 2018, na pulsão da campanha eleitoral bolsonarista, nasceu o segundo
“partido de procuradores”, o Ministério Público Pró-Sociedade, fiel ao “conservadorismo”
e devotado a impedir “que as coisas boas e belas sejam destruídas”.
Só em 2005 instalou-se o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), formalmente destinado a fiscalizar o único Poder sem
controle externo. Sua composição, porém, evidencia a captura corporativa do
órgão de controle pelo Poder descontrolado: dos 14 integrantes, sete são
designados pelo próprio MP. O ferrolho atingiu um ápice com a submissão do
Executivo, nos mandatos de Lula e Dilma Rousseff, às listas tríplices eleitas
no interior do MP para o cargo de PGR.
Dessas listas, na avalanche da Lava-Jato,
emergiu Rodrigo Janot, PGR entre 2013 e 2017, que decidiu travar combate contra
“o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. O MP
convertia-se, explicitamente, em partido reformador das instituições,
engajando-se numa cruzada cujos alvos eram os principais partidos políticos
(PT, PSDB e PMDB). Valia tudo, inclusive o escandaloso acordo judicial de
impunidade absoluta firmado com Joesley Batista (inicialmente validado por um
STF de cócoras).
Janot e a força-tarefa de Curitiba ajudaram a
implodir a já frágil estabilidade da Nova República, desbravando o atalho que
levaria Bolsonaro ao Planalto. Num conluio ilegal, o juiz Sergio Moro e os
procuradores da força-tarefa perverteram — com a ajuda providencial do STF — a
maior investigação de corrupção política da História brasileira. No fim, quando
a farsa judicial veio à luz, as provas legítimas de crimes bilionários contra o
patrimônio público foram atiradas às lixeiras. O golpe frustrado do 8 de Janeiro
e o Congresso do Centrão formam as heranças da hidra descontrolada.
Bolsonaro, principal beneficiário da
politização do MP, comandou uma reação sem reforma institucional,
desvencilhando-se da lista tríplice corporativa para entronizar Augusto Aras. A
Procuradoria-Geral da República foi, então, rebaixada à condição de guarda
pretoriana de um Executivo golpista e, de modo geral, de uma elite política
assustada. Diante disso, o STF ocupou a trincheira abandonada por Aras e,
extrapolando suas funções constitucionais, abriu o “inquérito de ofício”
destinado à repressão das articulações golpistas.
Lula também, corretamente, ignorou a lista
tríplice para indicar Gonet. O presidente e o novo PGR falaram coisas certas,
mas fugiram ao tema de fundo. A mera vontade das autoridades não será
suficiente para sanar a anarquia institucional provocada pela politização do
MP. O Quarto Poder “honesto”, “duro” e “justo” depende de reformas nas leis que
definem suas funções e configuram os mecanismos de controle externo. Sem isso,
a hidra voltará a assombrar a democracia.
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