O Globo
“Éramos felizes e não sabíamos” antes da
existência das redes sociais. Talvez. Nada contra o saudosismo. Idealizações do
passado compõem o acervo das conversas jogadas fora e não raro acomodam,
diluem, nossas incompreensões (e outros impulsos do pequeno xandão havido em
cada um de nós). Têm seu valor.
Era mais feliz quando o adversário não
passava por mim sem que eu nem sequer visse a bola. Quem nunca contestou o
passar do tempo — o drible fácil do garoto de 20 anos — com fantasias sobre a
própria juventude? Tem a ver com reação. Poderia lhe aplicar uma tesoura
voadora. Fazê-lo voar. Mais provável que não o acertasse; que o machucado fosse
eu.
Tem a ver com controle. Com a perda de controle. Tudo bem, não sendo você juiz da Suprema Corte. Não sendo o juiz sob cujos inquéritos, onipresentes e eternos, pratica-se censura prévia. Em redes sociais.
O “éramos felizes e não sabíamos” de
Alexandre de Moraes expressa autoritarismo. Um poderoso, o poderoso máximo do
país, inconformado — não com a existência das redes sociais — com a
impossibilidade de controlá-las. E então: tesouras voadoras.
Tem a ver com a necessidade de exercer poder,
acostumado e estimulado o ministro a dominar e resolver. A seu modo. Nosso
delegadão moderador abridor de picadas-precedentes.
Tem a ver com Brasília, com o que aquele
universo deturpa. Com os mandatos que distribui. Ministros do Supremo podem
tudo. É o que a vida na capital lhes informa, de convescote em convescote. É
mais fácil controlar em Brasília. A agenda da semana passada ilustra. Tudo se
acerta, república à margem.
Moraes encontrou-se com Arthur Lira, a quem
já se serve café morno, e o enquadrou — sem precisar de tesoura voadora.
Interlocutores da dupla venderam uma “conversa dura”. Duro é acreditar. O
presidente da Câmara vinha brincando de plantar boatos sobre CPI para apurar
excessos do Judiciário. Instrumentalizou a grita bolsonarista para esquentar um
pouco o café. Foi decerto lembrado, jurisprudências ao vento, que o STF lhe
terá o foro infinitamente e tem sido gentil. De kit de robótica não se ouviu
mais falar.
O ministro também esteve no Senado. Foi lá
que disparou seu “éramos felizes e não sabíamos”. É de lá que vem — plantada
por Davi Alcolumbre, só menos poderoso que Moraes — a projeção de que, sendo
ainda mais conservadora a Casa a partir de 2026, inevitável será um processo de
impeachment contra integrante do STF.
Alcolumbre, que nunca deixou de presidir o
Senado, armou seu gabinete na Comissão de Constituição e Justiça, desde onde
opera milagres como o que fez, pelas verbas da Codevasf, as bacias dos rios São
Francisco e Parnaíba chegarem ao Amapá. Ele vocaliza o ânimo do Congresso ante
o Supremo legislador que corrige-preenche omissões do Parlamento.
Ânimos conservadores mudam, indignações
arrefecem, a depender dos progressismos. Brasília se acerta. Enquanto se
especula com as chances de impeachment de ministro do STF na próxima
legislatura, testam-se — na mesma CCJ — os humores da sociedade ante a emenda
constitucional, a PEC do Quinquênio, que turbinaria os salários de juízes.
(À parte Fux, líder sindical histórico dos
togados, seria bom saber o que pensam os outros supremos a respeito dessa
“mentalidade antiquíssima”, também “mercantilista”, patrimonialismo que
coloniza o Brasil.)
O presidente Lula jantou com sua bancada no
STF. Moraes esteve presente, onipresente. Como seus inquéritos. O estado de
vigília — este 8 de Janeiro permanente — que sustenta, em proteção à
democracia, transformou ministro em instituição, mesmo na personificação da
Justiça; arbitrariedades, em instrumentos garantidores da saúde pátria. É
possível que transforme essas minhas críticas em ataques.
A bancada do governo no Supremo, promotora do
expansionismo criador do terceiro turno parlamentar, cobrando ao Planalto
postura ativa em defesa de seus senadores no tribunal; Moraes tendo liderado o
esforço que assegurou o mandato da democracia — logo, claro, de Lula. As coisas
se confundem. Confundem-se as fronteiras, os limites, e eventos assim se tornam
naturais.
Brasília se resolve. Havendo cargos e grana
para as emendas de comissão, nova fachada do orçamento secreto e fundo
eleitoral paralelo em ano eleitoral, resolve-se. Pacto arrecadatório para a
partilha dos gastos, beleza. Todo mundo quer uma PEC do Quinquênio para si.
E Lira, café aquecido, foi ter com Rui Costa,
da Casa Civil. Prometeu não se vingar do governo. Já indicara o novo chefe do
Incra em Alagoas. Vida que segue. Depois de manipular o bolsonarismo como
ferramenta de pressão e dar trela ao risco de “agenda-bomba”, o Lirão compõe.
Brasília se acerta, havendo dinheiro. Resolve-se. Fabrique-se, conforme
autoriza o natimorto (vulgo arcabouço) fiscal. Haverá.
A rapaziada é feliz e sabe.
Hoje encerro esta jornada no GLOBO. Foram
quase oito anos neste lote. Prazer e honra. Fui feliz. Sou gratíssimo. Grato
sobretudo aos leitores, que fizeram da coluna sucesso e referência.
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