O Globo
Não me importa que chamem de 'isentão' quem
não se abraça a nenhum dos polos
O psicólogo Adam Grant, uma das vozes
contemporâneas mais influentes, aponta a importância de nos mantermos
mentalmente flexíveis para lidar com uma realidade cada vez mais complexa. Para
ele, o melhor jeito de enfrentar catástrofes climáticas, pandemias, recessões e
ataques à democracia é abandonar o quentinho das nossas convicções e a
racionalidade binária. Ter coragem para escolher o desconforto. É o mesmo
conselho que Toni Morrison, primeira negra a ganhar o Nobel de Literatura,
costumava dar aos amigos: olhem menos para o espelho, mais para a janela.
Há anos procuro atuar dessa forma na TV e na minha vida. Peço licença às pessoas, presto atenção, aprendo um bocado e partilho com quem puder. Não me importa que chamem de “isentão” quem não se abraça a nenhum dos polos. Importa, para mim, lembrar que, ao se fechar numa caixinha, “de direita” ou “de esquerda”, a pessoa corre risco de se fechar também para boas ideias que venham da outra. Claro, não é problema se identificar com um lado. Só defendo que na vida, como no futebol, dá para chutar com os dois pés.
Não adianta ser um político que grita aos
quatro cantos ser representante da ordem e de Deus, mas não respeita a vida, as
pessoas nem a própria democracia. Não adianta ser um político que diz olhar
pelos mais pobres, mas não se atualiza sobre questões globais nem olha para
novas tecnologias, perpetuando uma visão retrógrada do Estado.
Poderia escrever parágrafos sobre Fernando
Henrique Cardoso. Talvez o maior líder ambidestro da nossa jovem democracia,
ele ampliou garantias dos direitos individuais, universalizou o ensino básico,
derrotou a inflação, lançou programas de renda, privatizou serviços públicos
ineficientes e abriu o Brasil para o mundo. Um capitalista social, um liberal
progressista, um social-democrata, tanto faz a definição. Tenho perfeita
consciência, no entanto, de que basta citar FH para parte da sociedade
interditar o debate e pegar em armas. (Minha intuição, e torcida, é que o tempo
fará justiça.) Por isso, especialmente para as tropas dos dois polos, quero
trazer à luz assuntos do noticiário e apontar como o debate ganharia com uma
abordagem substantiva e desafiadora ao pensamento polarizado.
Você sabia que a conta de luz do brasileiro
talvez seja a mais injusta do mundo, que o pobre paga pelo watt três vezes mais
que as empresas? Quem cobra mudanças ouve que é vital preservar a “segurança
jurídica” dos contratos. Enquanto isso, a população fica à mercê de serviços
precários, mesmo nos centros urbanos. Foi um alento, na virada do ano,
quando Lula e
governadores discursaram contra as assimetrias. Mas o que se vê desde então?
Discussão de mais subsídios e penduricalhos na conta, tudo o que interessa aos
lobbies do statu quo. Não é
o caso de promover nova abertura, sem, claro, comprometer a segurança do
sistema? Um avanço na privatização, para dar aos mais pobres a liberdade de
escolha que hoje só os mais ricos desfrutam? Economias modernas, inclusive
social-democratas, pegaram essa trilha. Aqui no Brasil há exemplos que deram
certo, caso do setor da telefonia.
Outro tema que merece enfrentamento
ambidestro é o desemprego. Faz todo o sentido investir dinheiro público
desonerando o empregador que der carteira assinada para quem hoje não tem
oportunidades. Poderíamos priorizar jovens de 18 a 25 anos que cursaram o
ensino público. E/ou mulheres com filhos, notadamente mães solo, as mais
alijadas do mercado. Já há projetos de lei madurinhos para fazer isso virar
realidade. Basta alguém do círculo palaciano sair da caixinha e jogar com as
duas pernas.
Do mesmo modo, em vez de bombardear a ideia
do governo paulista de adotar soluções de inteligência artificial nas salas de
aula — algo inevitável, já adotado nas melhores escolas particulares —, por que
não discutir como isso liberaria tempo e energia para aspectos hoje
negligenciados na rede pública? Sabemos da importância para as crianças do
desenvolvimento de competências socioemocionais. A grade curricular precisa
capacitar nossos jovens para lidar com um futuro cada vez mais disruptivo, e os
professores precisam ter condições de se dedicar a isso.
Para não ficar apenas em senões, vale
mencionar a reforma tributária. Se protegido dos grupos de pressão e não
desfigurado na regulação, o pacote de mudanças nos impostos comprovará como é
preciosa a busca de consensos que transcendam a governos e tribos partidárias.
Que nesse caso se deve à iniciativa, à determinação e ao espírito cívico do
economista Bernard Appy, um… ambidestro!
Quero um país mais rico, mais aberto, mais
moderno e mais produtivo. Quero também um país mais justo, solidário, inclusivo
e afetivo. Em caixinhas garanto que não vou me trancar. Até porque uma das
minhas poucas certezas é que nós, que não nos deixamos encaixotar, somos
muitos.
2 comentários:
Ao bater os olhos no nome do autor da peça, lembrei-me de uma antiga dupla sertaneja que continua a fazer sucesso :
Nem Ly & Nem Lerey
😏
Ser ''isentão'' em relação a FHC e Lula eu concordo,entre Lula e Boslosnaro é um erro grotesco.
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