O Globo
Militância progressista boicota, intimida e
cancela quem desafia o coro dos onipotentes e não reza conforme sua cartilha
No mesmo 19 de junho em que Chico Buarque fez
80 anos, Solano Fernandes (nome fictício — como, aliás, quase tudo o que se
segue) completou 100. Tinha 46 quando lhe caiu nas mãos um inocente samba em
que a vítima de um relacionamento tóxico (Hoje você é quem manda/Falou, tá
falado/Não tem discussão) se ressignifica enquanto pessoa subalternizada
(Apesar de você/Amanhã há de ser outro dia) e exige reparação da dívida
histórica (Vou cobrar com juros, juro (...) Você vai pagar e é dobrado/Cada
lágrima rolada nesse meu penar).
De boa-fé, Solano — censor, servidor público concursado — liberou o samba. Desde então, têm sido 54 anos de culpa e autoflagelação por não ter captado a mensagem subliminar. Como um garoto de 20 e poucos anos pôde enganá-lo e a toda a máquina montada para proteger o público e as autoridades daqueles que tentavam ferir a dignidade e o interesse nacionais?
E se A minha gente sofrida/Despediu-se da
dor/Pra ver a banda passar/Cantando coisas de amor fosse uma metáfora para a
revolução cubana — indo tudo por água abaixo (Mas para meu desencanto/O que era
doce acabou) com o golpe de 64? Quem garante que Levou os meus planos/Meus
pobres enganos/Os meus 20 anos/O meu coração não seria referência à luta
armada? Ou que Não chore ainda não/Que eu tenho a impressão/Que o samba vem aí
não era um chamado à resistência ao AI-5? Devia ter censurado tudo. Sem nem
ler. É Chico? Veta. Mais ou menos como hoje faz (por outros meios) a militância
progressista — que boicota, intimida e cancela quem desafia o coro dos
onipotentes e não reza conforme sua cartilha.
Aposentado compulsoriamente por causa do
vacilo, Solano se manteve em alerta máximo. Viu em “Geni” a representação da
burguesia neoliberal (Joga pedra na Geni/Joga bosta na Geni). Em “Lígia” (E
quando eu me apaixonei/Não passou de ilusão), uma alusão às Diretas Já. “Eu te
amo” (Ah, se já perdemos a noção da hora/Se juntos já jogamos tudo fora) seria
uma insuspeitada crítica à falta de apoio da esquerda à Constituinte e ao Plano
Real. (A cronologia dos fatos e das canções é o de menos: lógica nunca foi o
forte dos censores — e isto aqui é uma alegoria.)
Solano lamenta ter atuado nos anos 60 e 70,
não agora, quando a censura passou de vilã a queridinha. Lembra-se de quando
cortaram o pentelho da “Ciranda da bailarina” e o pecado, safado, debaixo do
meu cobertor de “Não existe pecado ao sul do Equador”, e todo mundo achou
ridículo. Hoje está normalizado ter de trocar letras por números em palavras
como g4y e g0rd4 para tentar escapar dos algoritmos e das patrulhas.
Se ainda estivesse na ativa, faria como seus
herdeiros no controle da moral e dos bons costumes — protegidos sob o escudo do
politicamente correto — e julgaria o Chico de ontem com os parâmetros de hoje.
Veria tentativa de embranquecimento em “Morena (morena?) de Angola”.
Preconceito e sexualização dos corpos pretos em Vem, mulato mole/Dançar dans
mes bras. Denunciaria machismo, gordofobia, homofobia, xenofobia, capacitismo
onde nunca houve nada disso.
Centenário, Solano reconhece que Chico &
Cia driblaram brilhantemente a censura oficial dos anos de chumbo. Tem
procurado, entre os artistas de 20 e poucos anos de agora, aquele que fará a
bola passar, com a mesma categoria, por entre as pernas dos novos censores
(terceirizados, na mídia tradicional e nas redes sociais). Ainda não encontrou
nenhum.
6 comentários:
Brilhante jornalista!
Coisa rara ouvir jornalistas de grande mídia dizer que estamos vivendo uma perseguição ideológica aos opositores do governo , tendo à frente o STF na pessoa do Alexandre de Moraes que virou grande ditador do Brasil Essa questão tem que ser discutida por aqueles que falam e pregam a democracia acima de tudo
Estamos vivendo uma ditadura do consórcio judiciário com o governo federal
É por essas e por outras que a direita, os conservadores estão avançando no mundo
Os cidadãos perceberam o viés autoritário dos chamados governos progressistas de esquerda, isso ficou acentuado durante a pandemia a onde os governos de esquerda impuseram uma ditadura sanitária sem nenhuma justificativa científica e social E o que é pior não permitiram que remédios eficazes ajudassem no combate a doença E aí ficou claro que eles queriam uma situação mais grave possível para implantar o medo e aí poder controlar melhor as sociedades e acabou dando certo mas o povo percebeu e está reagindo
O comentarista acima 👆🏿👆🏿👆🏿 lembra, e muito, o Lula falando. Inspiradíssimo.
Pô! O Lula já está tropeçando nas suas palavras, e ainda querem compará-lo ao papagaio bolsonarista...
Ambos são mentirosos contumazes.
Verdade. Mas se compararmos os 4 Pinóquios (Bolsonaro, Trump, o papagaio bolsonarista e Lula), os narizes não são iguais, pois o do Lula é menor.
''Lígia'' é música e letra de Antônio Carlos Jobim.
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