O Globo
No espelho, sem maquiagem e com as olheiras
matinais, estamos muito mal na foto
Com um pouco de exagero, o conservadorismo
brasileiro pode ser equiparado ao fundamentalismo iraniano. Há um tradicional
entusiasmo pátrio com as belezas naturais e a simpatia tropical da população.
Mas isso soa apenas cosmético. No espelho, sem maquiagem e com as olheiras
matinais, estamos muito mal na foto.
Em outra mão, o conservadorismo se reflete nos índices de violência. Os comunicados da ONU, dada nossa diminuta relevância mundial, pouco se referem às chacinas habituais ocorridas nas cidades brasileiras ou no campo e só citam por vezes o trágico extermínio dos povos originários. Reflexo do descaso planetário provocado pela reconhecimento de que o Brasil é de fato um lugar estranho. Haja vista que a extrema direita agora deseja tirar a praia dos pobres. Vai-se o fio dental, e ganha-se um pastor.
Foram míseros os momentos da História em que
o brasileiro esteve tão ameaçado pela religião. Nem por isso ocorreu aumento da
tolerância com a tragédia dos pobres. A sociedade cindida parece desejar jogar
da caçamba os desvalidos e colocá-los na cadeia. Ou matá-los. Na frase
definitiva de Christopher Lasch, vivemos uma democracia das elites. Para
consolidar o poder, lançam mão do Estado contra a população. Cada vez mais as
leis oprimem os desguarnecidos.
O financiamento da religião hoje ocorre não
de olho no amparo emocional ou no afeto humanitário, mas tão somente a reboque
da catequização de todas as almas. Isso não pode acabar bem. A ideia de
sociedade presume a convivência de diversas opiniões e diferenças, em que a
maioria deve civilizadamente respeitar as minorias. Em caso contrário, as
crenças de alguns caminham para o aprisionamento da nossa gente — e todos serão
obrigados a usar véus. Mesmo os incréus, como estão afamados os que não
comungam (ops!) sob o dízimo dos cultos.
Numa régua simples, o Brasil aos poucos se
transforma no Irã da
América Latina. Em 1925, o físico Albert Einstein, em sua visita à região, já
notava que o Uruguai tinha
modernidade nos costumes e trato bem maior se comparado ao Brasil. Enquanto na
terra de Noel e Guimarães Rosa se criminalizam muitas das liberdades
individuais, países vizinhos, sem serem ateus ou agnósticos, muito pelo
contrário, superaram a imaginária lei divina escrita pelos suspeitos de sempre.
Naquelas terras, são os homens de carne e osso que legislam. Tanto as
sociedades locais, seja por meio de plebiscitos ou de seus políticos, quanto o
Judiciário reconheceram os direitos individuais, a despeito de crenças
religiosas ou fundamentalistas.
Argentina,
Uruguai e Colômbia estão
à frente em vários princípios morais. Em 2022, a Colômbia descriminalizou o
aborto até 24 semanas. Dois anos antes, a Argentina fez o mesmo para gestação
até 14 semanas. E o Uruguai? Aprovou a interrupção em 2012. A Cuba de Fidel, em
1968. O Chile aguarda
somente sua regularização. No mundo, 77 países, com diferentes nuances, já
atualizaram favoravelmente suas legislações.
No Brasil dos pastores, a Câmara aprovou na
semana passada a urgência de proposta de lei que piora ainda mais a legislação
contra o aborto. De autoria do deputado Sóstenes
Cavalcante, o aborto, se realizado após a 22ª semana, estará equiparado ao
homicídio. O prazo vale também para as vítimas de estupro. Ainda segundo a
redação, a vítima de violência sexual terá uma condenação superior à do
estuprador. Sóstenes é pastor, bolsonarista raiz e foi crítico acerbo do
isolamento social. Acabou internado numa UTI com Covid-19. Chegou à Câmara pelo
voto de 65.443 exultantes almas.
Também o combate às drogas escande o
fundamentalismo brasileiro se comparado à América Latina. O Uruguai — de novo o
Uruguai, caro Einstein! — tornou-se o primeiro país no mundo a legalizar a
produção e consumo da Cannabis. Em 2015, foi a vez de o Chile aprovar seu uso
terapêutico. A descriminalização ocorreu nos anos seguintes na Colômbia,
no Peru e
na Argentina. Na contramão, discute-se no Congresso, relatado pelo bolsonarista
Ricardo Salles, a condenação pelo porte de qualquer quantidade de
entorpecentes.
Assim como o aborto, a criminalização da
Cannabis penaliza a população pobre — o que sempre é lembrado pelo presidente
do Supremo, Luís
Roberto Barroso. O Brasil desponta como terceira maior população carcerária
do mundo, e um terço das penas se dá pela lei de drogas. Como ressalta o
ministro, em geral são jovens negros. Vale lembrar, as maiores vítimas de
homícidio nos índices de violência no Brasil.
Não é de espantar que três países
fronteiriços — Uruguai, Colômbia e Argentina — tenham transformado o Brasil
numa relíquia do reacionarismo. É uma democracia para as elites.
3 comentários:
Excelente coluna! O autor do projeto que criminaliza crianças e mulheres já violentadas "é pastor, bolsonarista raiz e foi crítico do isolamento social. Acabou internado numa UTI com Covid-19." Alguém tinha dúvida de que tipo de canalha seria capaz de propor um projeto tão absurdo?
Importante lembrar Que a maior entidade da igreja católica brasileira CNBB emitiu uma carta em que apoia integralmente a PL contra o aborto em gestação acima de 22 semanas , que está tramitando na Câmara Federal
Com o lema:
“ a mãe e a criança devem viver e ter vida em abundância “
Coitada da CNBB,parou no tempo,é criacionista ainda!
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