domingo, 7 de novembro de 2010

O MST que sai das urnas :: José de Souza Martins

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS

Resultado eleitoral oposto no RS e PR revelou mudanças na percepção da questão agrária no País

O principal dirigente e ideólogo do MST, João Pedro Stédile, em seguida à vitória de Dilma Rousseff na eleição para Presidente da República, anunciou a elaboração de uma pauta de reivindicações a serem a ela apresentadas. Destacou o assentamento dos 100 mil acampados à espera de inclusão no programa de reforma agrária e a agilização das medidas relativas à erradicação do trabalho escravo. No dia seguinte, em sua primeira entrevista como presidente eleita, Dilma Rousseff mandou recado de volta: "Não compactuo com ilegalidade, nem com invasão de prédios públicos, nem com invasão de propriedades que estão sendo produtivamente administradas". Mandou recado, também, para o outro lado: "O MST não é um caso de polícia". E definiu como será por ela tratada a questão fundiária: "O País tem terras suficientes para continuar fazendo a reforma agrária". No fundo, a reforma será pautada pelos mesmos objetivos conservadores que a regulam desde o regime militar: converter os sem-terra em proprietários e assegurar-lhes renda suficiente.

Dilma confirma a distância que separa o governo petista e o MST, que é a distância do poder. No início do primeiro governo Lula, o MST, e a Pastoral da Terra que lhe deu origem, tentaram a estratégia da duplicação da política agrária; a sua, de um lado, e a dos compromissos do governo, de outro. O presidente do Incra, indicado pela CPT, tentou radicalizar a reforma agrária, desencontrando-se com as diretrizes próprias do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do governo. Lula foi rápido e claro: demitiu-o, nomeando para o lugar alguém identificado com as orientações governamentais e as razões de Estado. Dilma, agora, antecipa-se: antes de ouvir, já manda dizer o que está disposta a escutar e a fazer.

Mas sua opção deixa dúvidas quanto ao futuro do MST, cuja função histórica não pode ser subestimada. O MST, do mesmo modo que a CPT, deu direção política às lutas camponesas, antes perdidas e dispersas entre messianismo e milenarismo, de um lado, e banditismo rural, de outro. Ambos colocaram a insurgência do campo na pauta do Estado como questão política, retirando-lhe o estigma de questão policial. Mas, de vários modos, Lula trabalhou para esvaziar-lhes a função mediadora no conflito fundiário e na questão agrária. O golpe principal foi com o Bolsa-Família, que se tornou a solução mínima para o problema da pobreza rural no lugar do radicalismo da solução máxima preconizada pelo MST e pela CPT. Um de seus efeitos foi a atenuação dos ímpetos de reivindicação social no campo.

Os dados sobre os conflitos rurais, publicados pela Comissão Pastoral da Terra em 2009, indicam declínios significativos tanto nas tensões quanto na curva ascendente das reivindicações. Entre 2002 e 2009, o número de assassinatos no campo caiu de 43 para 24. Em 2003 e 2004, os dois primeiros anos do PT no poder, o número de ocorrências de conflito cresceu cerca de 50% em relação ao último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso. Em 2009, voltaram para quase o mesmo número de 2002. De 64 acampamentos no último ano do governo FHC, o número explodiu para 285, no primeiro ano do governo Lula, caindo para 36 em 2009. Um claro indício do MST atuando como grupo de pressão, o declínio indicando a ineficácia da tática e sua acomodação à oposta tendência do governo. Ao mesmo tempo, Stédile vem reiteradamente denunciando o governo Lula, do qual é aliado, por fazer uma reforma agrária aquém da de Fernando Henrique Cardoso e, poderia dizer, aquém da de José Sarney.

Uma indicação não menos importante das mudanças que, dentre outros temas, envolvem a questão agrária é o do resultado eleitoral oposto, nestas eleições, no Rio Grande do Sul e no Pará. No sul, o eleitorado colocou o PT no lugar do PSDB; no norte, colocou o PSDB no lugar do PT. São dois estados de agudo envolvimento do MST na luta pela terra e também estados marcados por dois episódios trágicos de violência entre as polícias militares e os sem-terra. No sul, em 1990, um soldado da Brigada Militar foi morto por um sem terra com uma foiçada num confronto entre os dois grupos nas ruas de Porto Alegre. No norte, em 1996, ocorreu a tragédia de Eldorado de Carajás, num confronto de estrada em que a Polícia Militar matou 19 acampados. Nos dois casos, o eleitorado mais amplo considerou o partido do MST um partido alternativo e não um partido imprescindível.

Embora tudo sugira que, por decisões do próprio governo do PT, a reforma agrária vem se tornando um tema menor na agenda política do País, há um elenco de problemas não resolvidos no âmbito da questão agrária. Sua inclusão na pauta de reivindicações sociais dependerá muito mais de que os dirigentes do MST consigam superar sua própria e notória alienação política do que das disposições do governo Dilma. À luz do momento, os equívocos e recuos são muitos, com a sujeição partidária da organização distanciando-a das possibilidades de transformação social que sua própria prática propõe.


José de Souza Martins é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros, é autor de 'Reforma Agrária: O Impossível Diálogo'(Edusp, 2009)

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