A Hora do Lobo é um filme de Ingmar Bergman. Os antigos a chamavam assim
porque é a hora em que a maioria das pessoas morre... e a maioria nasce. Nessa
hora os pesadelos nos invadem, como o fizeram com o personagem Johan Borg,
interpretado por Max von Sydow.
Como projeto destinado a mudar a cultura política do País, o PT fracassou no
início de 2003. Para mim, que desejava uma trajetória renovadora, o PT
sobrevive como um fósforo frio. Entretanto, na realidade, é uma força
indiscutível. Detém o poder central, ocupou a máquina do Estado, criou um
razoável aparato de propaganda e parece que o dinheiro chove em sua horta com a
regularidade das chuvas vespertinas na Floresta Amazônica. Mas o PT está diante
de um novo momento que poderia levá-lo a uma crise existencial, como o
personagem de Bergman, atormentado pelos pesadelos. Pode também empurrá-lo mais
ainda para o pragmatismo que cavou o abismo entre as propostas do passado e a
realidade do presente.
O PT sempre usou duas táticas combinadas para enfrentar as denúncias de
corrupção. A primeira é enfatizar seu objetivo: uma política social que
distribui renda e reduz as grandes desigualdades nacionais. Diante dessa
equação que enfatiza os fins e relativiza os meios, alguns quadros chegam a
desprezar as críticas, atribuindo-as às obsessões da classe média,
etiquetando-as como um comportamento da velha UDN, partido marcado pela
oposição a Getúlio Vargas e pela proximidade com o golpe que derrubou João
Goulart. A segunda é criar uma versão corrigida para os fatos negativos, certo
de que a opinião pública ficará perdida na guerra de versões. Esta tática é a
que enfatiza o desprezo da política moderna pelas evidências, como se o
confronto fosse uma guerra em que a verdade é vitimada por ambos os lados.
Acontece que essa fuga das evidências encontra seu teste máximo no
julgamento do mensalão. O ministro Joaquim Barbosa apresenta as acusações com
grande riqueza de detalhes. As teses corrigidas foram sendo atropeladas pelos
fatos. Não era dinheiro público? Ficou claro que sim, era dinheiro público
circulando no mensalão. Ninguém comprou ninguém, eram apenas empréstimos entre
aliados. Teses que se tornam risíveis diante da origem e do volume do dinheiro.
O PT salvando o PP de José Janene, Pedro Correa e Pedro Henry da fúria dos
credores?
O relatório de Joaquim Barbosa apresenta o mensalão como uma evidência
reconhecida pela maioria do Supremo, dos órgãos de comunicação e dos
brasileiros. Como ficará a tática do PT diante dessa realidade? Negar a
evidência? É um tipo de reação que, mesmo em tempo de prosperidade econômica,
não funciona quando os fatos são inequívocos.
Ao longo de minhas viagens observei que o mensalão não havia afetado as
eleições municipais. Mas o processo está em curso. Algumas cidades já estão
afetadas, como São Paulo e Curitiba. Nesta ocorre algo bastante irônico: o
candidato Gustavo Fruet (PDT) é acusado de ter o apoio do PT e por isso perde
votos. Fruet foi um dos deputados que investigaram o mensalão na CPI dos
Correios.
A reação do PT diante da possível condenação de seus líderes vai ser
decisiva. Encontrará forças para reconhecer seu erro, aceitar o julgamento do
STF e iniciar um processo de autocrítica? Tudo indica que não. A teoria
conspiratória domina suas declarações. O mensalão foi uma invenção da mídia
golpista, dizem alguns. Na nota dos partidos aliados, que deviam ser chamados
de partidos submissos, acusa-se uma manobra da oposição, como se tudo isso
tivesse sido construído por ela, que descansa em berço esplêndido.
Numa entrevista raivosa, um dos réus, Paulo Rocha (PT-PA), alega que as
denúncias do mensalão ocorrem porque Lula abriu o mercado brasileiro aos países
árabes. A tese conspiratória é tão clássica que os judeus não poderiam ser
esquecidos.
O ex-presidente Lula parece viver realmente a hora do lobo. Percorre o
Brasil atacando adversários e diz que, tal como venceu o câncer, vai derrotar
os candidatos de oposição. Se o ressentimento e o rancor brotam com tanta
facilidade dos lábios do líder máximo, o que esperar do exército virtual de
combatentes pagos para atirar pedras?
Este é um momento crítico na história do PT. Deve contestar estas evidências
com a mesma eloquência com que contestou outras. Mas as de agora são
transmitidas ao vivo, foram submetidas ao exame de ministros do Supremo, estão
coalhadas de fatos, depoimentos, provas.
Ao contestar as evidências o PT não inventa um caminho. Paulo Maluf foi
acusado durante anos de desviar dinheiro para o exterior e sempre negou. A
condenação e a eventual prisão de líderes não afastam o PT do poder, mas
transformam o encontro nos jardins da casa de Maluf em algo mais que uma
simples oportunidade fotográfica. O PT não só verteu milhões para os caixas do
partido Maluf, como aceitará a tática malufista de negar as evidências, mesmo
quando são esmagadoras.
Em defesa de Maluf pode-se dizer que ele nunca prometeu a renovação ética da
política brasileira. Usa apenas um mesmo e fiel assessor de imprensa para
rebater críticas nos espaços de cartas de leitores. Descendente de árabes,
Maluf jamais, ao que me consta, culpou uma conspiração sionista por sua
desgraça. Sempre foi o Maluf apenas, sem maiores mistificações.
Montado numa máquina publicitária, apoiado por uma miríade de intelectuais,
orientado por competentes marqueteiros, o PT viverá em escala partidária a
aventura individual de Maluf: negar as evidências. Até o momento nada indica
que assumirá a realidade. Seu caminho deve ser negar, negar, como o marido
infiel nas peças de Nelson Rodrigues - por sinal, o inventor da expressão
"óbvio ululante".
O mensalão não é um cadáver no armário, invenção de opositores ou da
imprensa. Nasceu, cresceu e implodiu nas entranhas do governo. É difícil
sentar-se em cima dos fatos. Ele são como uma baioneta: espetam.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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