• Estatal criou rede de empresas para executar obras sem se submeter a fiscalização mais rigorosa
Vinicius Sassine e Eduardo Bresciani – O Globo
BRASÍLIA - A Petrobras criou uma rede de empresas para executar obras de grande porte sem se submeter a fiscalização mais rigorosa de órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). As chamadas sociedades de propósito específico (SPEs) são um instrumento legal, existente para captação de recursos no mercado por meio de empresas independentes da companhia. Auditoria do TCU, porém, alerta que o modelo adotado pela estatal pode criar precedentes e resultar numa “expansão descontrolada”.
Demonstrações contábeis a partir de 2005 mostram que a Petrobras já constituiu 24 SPEs, com investimentos de pelo menos US$ 21,9 bilhões, ou R$ 59 bilhões — muitos deles para obras como gasodutos, plataformas, refinarias e transporte de óleo. Auditoria sigilosa apontou que em uma das SPEs, para construir a rede de gasodutos Gasene, há indícios de superfaturamento de até 1.800%, como revelou O GLOBO.
Ao lançar mão de uma empresa privada a estatal se vê livre do escrutínio a que é submetido o restante do governo federal. Nos debates sobre a fiscalização dos gastos públicos, a Petrobras costuma argumentar que os seus negócios têm caráter privado e, por isso, não devem ser submetidos ao crivo de órgãos como o TCU e a Controladoria-Geral da União (CGU).
A Petrobras só começou a informar detalhes contábeis das SPEs em 2005, depois que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que regula o mercado de capitais, editou uma norma com essa determinação para empresas SAs. Parte desses projetos da estatal foi estruturada no fim da década de 90 e no início dos anos 2000, nos governos de Fernando Henrique Cardoso. A prática prosseguiu nas gestões de Lula e Dilma Rousseff. Cinco SPEs permanecem independentes da estrutura formal da estatal e ainda não foram incorporadas a subsidiárias.
Investigações recentes em parte desses negócios, porém, mostram o total controle por parte da Petrobras e o emprego de recursos públicos nas obras. É o caso da rede de gasodutos Gasene, entre Rio de Janeiro e Bahia, construída a partir da constituição de uma SPE e incorporada por uma subsidiária da estatal — a Transportadora Associada de Gás (TAG) — em janeiro de 2012. O BNDES confirmou ao GLOBO que é a TAG quem paga o financiamento feito para a construção do gasoduto. Os recursos empregados são da ordem de R$ 4,5 bilhões.
A ofensiva da Petrobras sobre o TCU, no caso do Gasene, consistiu em reforçar o caráter privado do negócio. No curso da auditoria que mostrou uma série de irregularidades no empreendimento, o ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli afirmou que “os recursos alocados para o investimento são exclusivamente privados, não havendo qualquer participação de recursos da Petrobras.”
O ex-presidente da empresa contratada para fazer o gasoduto, que já admitiu ter sido apenas um “preposto” na função, usou um argumento na mesma direção: “A transportadora não tem de se submeter aos regramentos legais da administração pública, por se tratar de entidade de direito privado”, afirmou, ao ser cobrado sobre a falta de informações sobre os preços usados nas obras. Ele também argumentou ao TCU, em relação à cobrança de explicações sobre um superfaturamento superior a 1.800% em determinados trechos da obra, que não havia a obrigação de apresentar as justificativas previstas na Lei Orçamentária de 2008. Todos os argumentos, até agora, foram rejeitados pela equipe técnica do tribunal.
No documento da Petrobras que subsidiou a decisão de se criar a SPE dos gasodutos, os gerentes de três áreas da estatal argumentam que o modelo é o mais apropriado “em razão das restrições de orçamento de investimentos” e devido às “metas de resultado primário”. A empresa criada tem por objetivo captar recursos para a obra, mas tem todas as garantias da Petrobras para o investimento, inclusive a obrigação de a estatal quitar empréstimos tomados em caso de insucesso no projeto.
Recurso contra fiscalização
Há poucos dias, a Petrobras também recorreu contra a determinação do TCU para que envie documentos básicos sobre a construção do Gasene. O tribunal deu 30 dias, contados a partir de 9 de dezembro, para que a presidente Graça Foster entregasse um detalhamento de cada serviço no trecho entre Cacimbas (ES) e Catu (BA), onde foi detectado o superfaturamento, e a identificação de todos os responsáveis por aprovar as propostas de preços. A estatal contestou, no recurso, o envio da auditoria para a força-tarefa da Operação Lava-Jato no Paraná. Os papéis já estão em poder da Polícia Federal.
A construção de outro gasoduto, o Urucu-Coari-Manaus, no Amazonas, seguiu um modelo muito parecido, com a constituição de uma SPE para investimentos de US$ 1,4 bilhão. O TCU apontou diversas irregularidades nas obras, como dispensas ilegais de licitação, pagamentos adiantados sem a execução dos serviços e falta de detalhamento dos preços. Também faltava autorização da Agência Nacional do Petróleo (ANP) para que a SPE constituída construísse o gasoduto. A autorização havia sido concedida à TAG, subsidiária da Petrobras. Mais uma vez, a defesa recorreu à falta de vínculo entre estatal e empresa privada criada.
No TCU, diversos acórdãos já trataram de obras públicas tocadas por SPEs de estatais. O entendimento prevalecente até agora é de que o tribunal tem atribuição para investigar SPEs ligadas a empresas públicas. Em entrevista ao GLOBO, o novo ministro-chefe da CGU, Valdir Simão, afirmou não ter opinião consolidada a respeito da fiscalização das SPEs:
— Não sei se a gente tem algo aqui na CGU sobre isso. Também não tenho convicção de que SPEs afastam nossa atuação. Na empresa, na SPE, de fato, você pode ter um afastamento. Mas ainda não tenho como emitir opinião sobre isso.
O GLOBO enviou perguntas à Petrobras sobre a estruturação das SPEs e as estratégias para evitar a fiscalização de órgãos de controle. Não houve resposta até a conclusão desta edição.
Empresa da Petrobras no exterior tem sede no paraíso fiscal das Ilhas Cayman
• Por meio da Cayman Cabiúnas Investiment, a Petrobras realizou investimentos de US$ 850 milhões
Um ex-gerente da área financeira da Petrobras disse ao GLOBO que a criação de sociedades de propósito específico (SPEs) tem como objetivo realizar operações longe do alcance de órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), além da obtenção de benefícios tributários e “artifícios contábeis”.
O executivo disse que o modelo traz benefícios tributários à estatal, que muitas vezes opta por sediar SPEs no exterior para ter uma tributação menor do que teria no Brasil. A segregação do ativo no balanço também influencia na formação dessas empresas, porque isso evita comprometer limites de endividamento da estatal e facilita o acesso ao crédito.
Entre as SPEs da Petrobras no exterior, está uma sediada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. Por meio da Cayman Cabiúnas Investiment, a Petrobras realizou investimentos de US$ 850 milhões. No balanço, o projeto é descrito sendo como para “aumentar a capacidade de escoamento da produção de gás da Bacia de Campos”. Segundo nota enviada pela Petrobras na semana passada, o “Projeto Cabiúnas” teve início em 2000. Só em março de 2010 a estatal exerceu a opção de compra e incorporou a empresa, de acordo com os dados que constam nas demonstrações contábeis.
A Cayman Cabiúnas já chamou a atenção do TCU. Em um relatório de auditoria feito em 2011 sobre as obras da refinaria Duque de Caxias (Reduc), os técnicos estranharam o fato de a empresa ser, no papel, proprietária de ativos dentro da usina. Na ocasião, o tribunal determinou a uma de suas áreas técnicas que fizesse uma fiscalização específica sobre as SPEs no exterior.
“É de indagar-se como tal empresa alienígena tornou-se proprietária de ativos localizados dentro de uma refinaria da Petrobras” e, nas palavras dos gestores, “com uma característica fortemente estratégica, uma vez que objetiva assegurar o abastecimento de gás natural, especialmente térmico, sendo fundamental para a garantia do sistema Elétrico no Sul-Sudeste”.
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