- O Estado de S. Paulo
O esquerdista de carteirinha se sente justo e abençoado por um ideal e absolvido por seus erros
Impressionei-me há pouco com uma polêmica ilustrativa entre o Pf. Samuel Pessôa e Pf. Ruy Fausto, na revista Piauí. Os debatedores são dois homens de alto nível, ilustres, mas dava para ver o desejo exasperado de Ruy Fausto defendendo os conceitos que o formaram, no seio mais profundo do marxismo. S. Pessôa defendia mudanças pragmáticas na ideologia, mas Ruy se apegou à tentativa de salvar sua fé, propondo um ‘capitalismo cerceado, autolimitado’, quase um capitalismo sem mercado. Quase repetindo a frase famosa do Geisel, quando disse que era a favor do capitalismo, mas contra o lucro.
Pessôa também diz: “Não ocorre a Ruy que alguém possa ter reavaliado suas ideias em direção a uma aplicação possível da social-democracia. Quem evolui é imediatamente tachado de neoliberal ou fascista”. Na mosca. A grandeza de uma nova esquerda teria de ser a aceitação do possível, mas isso não é sedutor.
E hoje, vemos a urgente necessidade de uma reforma no País, quase com perda total, pela estupidez brizolista da presidente. E vemos a universidade crivada de agitação e propaganda pelos professores. Vemos a espantosa ignorância dos que protestam contra a revisão do País.
Por isso, dediquei-me a listar impressões sobre esquerda e direita, na acepção primitiva de nossa paisagem ideológica. Aí vai.
A esquerda se considera o Bem. A direita se considera o Bem. Ninguém bate no peito e grita: “Eu sou o Mal!”. Ninguém é canalha e todo mundo se acha meio “de esquerda”, porque sabe que essa palavra ostenta um halo luzente, como uma coroa de santinho. Ninguém quer ser “de direita” - palavra com o estigma da peste, da maldade contra o povo.
O esquerdista de punho cerrado e carteirinha se sente justo e abençoado por um ideal e absolvido por seus erros. Ele quer a “purificação” da sociedade e tão nobre é esse anseio que ele pode ignorar incômodos detalhes da política normal - a santidade não precisa da prudência. As complexidades da democracia o entediam e são lidas como frescura, vacilação pequeno-burguesa e, no limite, traição; macho vai à luta em linha reta, ignorando obstáculos - hesitação é coisa de viado (aliás, quem escreve ‘veado’ é ‘viado’ - apud Millôr F.).
Ele ignora meios objetivos, pois se acha fadado à vitória final que virá um dia. Quando? Ele não sabe, mas tem fé, como um bispo da Pastoral.
Como será essa “redenção”? Ela é uma vaga imagem de massas cantando nas praças, punhos erguidos, todos regidos por chefes iluminados, passando por cima da democracia, essa coisa labiríntica que enche o saco. A esquerda ama uma categoria imaginária chamada “povo”, sinônimo ibérico de “proletariado”.
Povo: multidões sem teto, sem terra, sem cultura política. Nossos pobres destituídos não opinam, não têm poder algum, mas, para o esquerdista tradicional, eles têm a aura, o charme franciscano do nada. Nada ter é santo. Eles fascinam por sua pureza, muito aquém do mercado ou da globalização da economia. Assim, a invencível circularidade do mundo ficaria sob controle e os sentimentos “individualistas” ficariam domados sob a ideia da “solidariedade”, esse remotíssimo sentimento humano.
O típico esquerdista sonha com um passado de paz (quando houve?). Sua utopia é regressiva, de marcha à ré. Eles até aceitam provisoriamente a complexidade para poder ‘operar’, mas sempre de olho no tal futuro simplório e meio maoista. Aliás, a esquerda brasileira é um sarapatel de leninismo com populismo brizolista (vide Dilma) que o PT, aliado à pior direita patrimonialista, transformou em apropriação indébita.
A esquerda não tem memória. Dá um frio na espinha vê-la tender para os mesmos erros de sempre, os mesmo planos descolados da realidade. Mais terrível ainda: as derrotas e os fracassos tendem a ser considerados ‘santos martírios’ - estranha cruzada que se orgulha das derrotas. Quanto mais sofrimento, mais merecimento. Esse masoquismo óbvio não pode ser autocriticado, revisto, pois a esquerda tem pavor de cair num temido desvio de direita - o horror máximo! Qualquer esquerdista prefere ser chamado de ‘sectário’, em vez de traidor. Gostam de gestos radicais, impensados - coisas de machos.
Em vez de se incluir no mundo real, criticamente, revendo dogmas e táticas, a esquerda continua, contra todas as evidências, querendo mudar, com enxadas e desejos, o mundo atual como se muda o curso de um rio. A ideia de revolução continua entranhada em suas cabeças como um tumor inoperável.
A esquerda acha que é o Sujeito da História, enquanto a Direita sabe que a História não tem sujeito; só tem objeto - o lucro.
A esquerda confunde utopia com projeto. Já o capitalista só tem um projeto: ele mesmo. A esquerda só tem fins; não tem meios. O burguês só tem meios - ele é um fim em si mesmo. “Um dia chegaremos lá” - diz a esquerda. O burguês já chegou. O esquerdista tradicional não aceita que o capitalismo tenha dominado o mundo, quando até a China sabe disso. A esquerda brasileira existe como nostalgia da esquerda - quer voltar a ser o que nunca foi.
A esquerda sonha com o futuro; a direita com o mercado futuro. A esquerda sonha com o Bem; a direita com os bens. A esquerda só ama o todo; a direita só pensa na parte (a sua).
A esquerda é católica; a direita luterana. A esquerda não acredita na democracia; a direita também não. A esquerda não leu O Capital; a direita também não, mas conhece o enredo.
A esquerda é épica; a direita realista. A esquerda se acha mais inteligente que nós; a direita o é.
E, para terminar, lembro-me de uma outra polêmica mais antiga, também entre pessoas inteligentíssimas e cultas.
Eram dois marxistas sérios discutindo com o grande liberal José Guilherme Merquior na TV.
Os dois esquerdistas desfiavam os grandes erros do comunismo, numa autocrítica lúcida e autêntica:
“Ah... porque erramos em 35 na Intentona, em 56 na Hungria, em 68 em Praga, em 68 no Brasil, erramos nisso, naquilo, aqui, acolá..., etc...”. José Guilherme não se aguentou e disparou: “Por que vocês não desistem?”.
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