domingo, 27 de agosto de 2017

Shakespeare e nós | Merval Pereira

- O Globo

O livro, “Ele, Shakespeare, visto por nós, os advogados”, a ser lançado amanhã, traz reflexões sobre nossa crise política, fazendo paralelos com “o complexo quadro das paixões, motivações, comportamentos, e grandeza e a mesquinhez humana”, abordado na obra de Shakespeare, segundo o editor José Luis Alqueres, que organizou o livro juntamente com o advogado e professor José Roberto Castro Neves, um bardólatra assumido.

Miguel Reale Júnior trata de Ricardo III. Luís Roberto Barroso apresenta Júlio César, com inquietante apreciação acerca do poder. Andréa Pachá manda uma carta para William. Francisco Müssnich tira reflexões sobre as desventuras do mundo contratual do Soneto 87. José Roberto de Castro Neves fala dos canalhas nas peças de Shakespeare. O jurista e professor Tercio Sampaio Ferraz Junior Brasil fala sobre o embate em torno da legitimidade no exercício do poder, referindo-se ao impeachment de Dilma Rousseff, que levou ao poder seu vice Michel Temer, “(...) girando em torno de mecanismos inerentes à ordem constitucional: uma vitória eleitoral inconteste contra o impeachment nela previsto. Na tela de fundo de uma tragédia anunciada, a luta pelo poder legítimo refletia o argumento do governante eleito, mas incapaz de dar conta dos desafios, contra a necessidade de um governo preparado, política e tecnicamente, para enfrentá-los.

“Um jogo entre legitimidade de origem e legitimidade de eficiência. Em Shakespeare, a tragédia costuma tomar um sentido próprio quando fincada na relação de poder, um núcleo sensível que repousa na capacidade de mandar e ser obedecido. (...) Aqui aparece, porém, um sentido irônico da tragédia, de então e atual, favorável à ambiguidade, em que se embaralha o que é com o que parece ser. (...) “Esse mecanismo maquiavélico reúne os critérios justos de legitimidade e os critérios factuais de eficácia nos critérios jurídicos de legalidade. Trata-se de uma reminiscência da doutrina dos dois corpos do rei, (...) hoje o corpo da corrupção alastrada, a minar as bases de acerto técnico de decisões politicamente angustiantes”.

Já o jurista Joaquim Falcão, da FGV-Direito do Rio, atualiza o drama de Macbeth desmontando antigo mote jurídico que garante que o que está fora dos autos não está na vida, no ensaio “O que está feito não pode ser desfeito: Macbeth, Moro e Teori”. Macbeth assassina Duncan, Rei da Escócia, à noite, instruído por sua própria esposa, Lady Macbeth. “Aqui começa o reinado da perseguição da memória. (...) E a tentativa de apagá-la. Mas a conquista criminosa do poder não poderá mais ser afastada da memória de ambos, Macbeth e Lady Macbeth. A memória do crime perseguirá Macbeth. Vai fazê-lo perder o trono. Em batalha”. Falcão traz a tragédia Macbeth, escrita entre 1606 e 1607, para o processo da Lava-Jato, relembrando o caso da interceptação telefônica do diálogo entre Dilma e Lula, combinando a assinatura do termo de posse de Lula como ministro da Casa Civil, “que lhe asseguraria a irresponsabilização processual”.

Falcão relata: “Para Moro, como juiz, era mais um indício de que Lula e seus advogados pretendiam e estavam tentando dificultar, interferir nas investigações. Para Lula, como investigado, garantiria o foro privilegiado. Para Dilma, como presidente, seria a evidência de obstrução de justiça. Juntada aos autos, Teori Zavascki declarou ilícita a gravação. Fora prova indevidamente colhida”.

Teori ordenou que a gravação fosse “deletada da memória do processo”. Pergunta o jurista: O ato jurídico processual desfaz o fato social e mental? (...) O acontecido pode ser “desacontecido”? O existente, inexistente? O sangue que dá vida ao processo é sua validade jurídica. Retirar a validade do ato de Moro estanca hoje o sangue de amanhã. Mas, e o de ontem? É possível estancar sangue já derramado?”

Escreve Joaquim Falcão: “O palco está então completo para nossa analogia: Macbeth e Lady Macbeth, Teori Zavascki e Sérgio Moro, Dilma Rousseff e Lula. Macbeth e Lady Macbeth perseguidos pela memória dos assassinatos. Lula e Dilma Rousseff, pela memória das gravações. A memória dos assassinatos estará presente na vingança dos barões. A memória da gravação estará presente no impeachment de Dilma. (...) Em outra passagem, Shakespeare afirma que as mãos sujas de sangue, mesmo depois de lavadas, não ficam limpas. Continuam sujas”.

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