Ao suspender parte do indulto de Natal concedido pelo presidente Michel Temer, aceitando a alegação da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, de que o decreto garantiria impunidade a corruptos, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, intrometeu-se em atribuição exclusiva de outro Poder. Dessa forma, contribuiu para ampliar a preocupante confusão institucional que se instalou no País como consequência da histeria justiceira em que se converteu a luta contra a corrupção de políticos, empresários e seus operadores.
O inciso XII do artigo 84 da Constituição diz que “compete privativamente ao presidente da República conceder indulto e comutar penas”. Não podem ser indultados os condenados por crimes inafiançáveis, conforme diz o artigo 5.º em seu inciso LXII. O indulto pode ser concedido a qualquer momento, a critério do presidente. Foi Itamar Franco (1992-1994) quem deu início ao que hoje é a tradição de conceder o indulto de forma anual e com data de 25 de dezembro, razão pela qual ficou conhecido como “indulto de Natal”.
Cabe também ao presidente estabelecer os critérios que nortearão o indulto. No caso do decreto de Temer, seriam beneficiados os presos que tivessem cumprido pelo menos 20% da pena até 25 de dezembro de 2017, desde que não fossem reincidentes e que tivessem sido condenados por crimes sem violência. No indulto de 2016, era necessário cumprir pelo menos um quarto da pena, e o beneficiado não poderia ter sido condenado a mais de 12 anos de prisão, limite que o atual decreto eliminou.
É preciso salientar que, embora tenha respeitado rigorosamente o que manda a Constituição, o indulto de Temer amplia em demasia a possibilidade de perdão. Permitir que um preso deixe a cadeia depois de cumprir apenas um quinto da sentença dá azo a que se fale em impunidade, pois a sociedade espera que de alguma forma e em medida razoável os criminosos paguem pelo que fizeram. Também é preciso registrar a incrível inabilidade do ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao lidar com a grande repercussão do episódio. Ao dizer que o presidente Temer “entendeu que era o momento político adequado para uma visão mais liberal da questão do indulto”, o ministro deu margem a que se insinuasse algum interesse político do presidente por trás de sua decisão. Ora, um ministro da Justiça que não consegue explicar as decisões do Executivo no seu âmbito de atuação e, além disso, as atribui a uma motivação política do presidente, não pode permanecer no cargo.
Mesmo sem as desastradas declarações do ministro, os ânimos dos cruzados anticorrupção teriam se exaltado de qualquer maneira, e não tardariam as acusações de que o indulto integra um complô político para “acabar com a Lava Jato” – ainda que isso não encontre respaldo na realidade, pois, segundo avaliação preliminar, o perdão de Temer poderia beneficiar apenas um dos condenados no âmbito da operação, o ex-deputado Luiz Argôlo.
Um dos procuradores da República que atuam na Lava Jato chegou a afirmar que o decreto presidencial configurava um “autoindulto” – ou seja, o presidente Temer teria interesse em favorecer a si mesmo. É difícil entender a lógica desse raciocínio, pois o indulto não diz respeito ao futuro.
Em flagrante contraste com esse animus puniendi, recorde-se que não houve semelhante indignação dos procuradores em 2015, quando a então presidente Dilma Rousseff indultou diversos condenados no mensalão. Tampouco se falou em impunidade quando Rodrigo Janot, na época procurador-geral, deu parecer favorável à extinção da pena do petista José Genoino, também condenado no mensalão. E, finalmente, a Procuradoria-Geral não viu problemas em premiar o delator Joesley Batista com a liberdade, depois que este confessou crimes em série.
Mas não se deve procurar lógica no discurso de ativistas, que é no que se transformaram alguns procuradores da República e alguns ministros do STF. Ao dar guarida à tese esdrúxula de que o indulto beneficiaria condenados no âmbito da Lava Jato e ao cancelar um ato da competência privativa do presidente da República, a ministra Cármen Lúcia preferiu o conforto da aclamação popular ao desconforto de fazer o que manda a lei.
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