- O Estado de S.Paulo
A Nação hoje enfrenta dúvidas sobre quem governa, quem decide em última instância
Um erro tornado comum entre nós consiste em identificar, se não em confundir, a ideia de democracia com processos eleitorais, como se ela a esses se reduzisse. Para além do exercício pleno da liberdade - liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento e expressão, liberdade de organização partidária e sindical - há questões de fundo de ordem institucional que dizem respeito à autoridade estatal.
Um dos problemas que o País enfrenta concerne a quem governa, isto é, quem decide em última instância. Há todo um desenho constitucional que estabelece a separação de Poderes, a partir do compartilhamento da autoridade, bem como suas distintas prerrogativas e competências.
Acontece que esse belo desenho termina por não ser efetivo quando os Poderes, além de outros que procuram afirmar-se, não só não se entendem, como abrem espaço a diferentes tipos de arbitrariedades. Não basta um texto que todos dizem respeitar se ele se mostra incapaz de regrar as relações sociais, econômicas e políticas em proveito do bem coletivo.
Formalmente, o País é organizado constitucionalmente em três Poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Quando observamos a realidade, contudo, constatamos que, materialmente, a organização efetiva é bem diferente, com mais outros três Poderes se acrescentando aos iniciais, a saber, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal. Como se não fosse suficiente, alguns destes são constituídos de micropoderes internos que se arrogam independência de suas autoridades hierárquicas.
O Ministério Público aparece não somente como um Poder independente, como tem a pretensão de invadir o espaço de outros Poderes. A partir de uma hermenêutica criativa, cada promotor, por exemplo, passou a gozar de uma independência individual como se fosse a expressão concreta de uma autonomia funcional. As portas ficam escancaradas para cada indivíduo interpretar a lei como bem entender.
O caso das delações em cascata, absolutamente sem controle, é um exemplo de como uma máquina de denúncias invadiu a competência dos demais Poderes, lançando nomes inocentes ao opróbrio. Delações não acompanhadas de provas são ineptas, porém os vazamentos já se tornam nesse meio tempo uma condenação pública.
As duas denúncias ineptas do ex-procurador-geral Rodrigo Janot contra o presidente da República lançaram o País numa profunda crise, tornando inviável a reforma da Previdência, condição sine qua non da tão necessária transformação do Brasil. No papel tudo parecia muito bonito, pois respaldado na luta contra a corrupção; mas, na verdade, o maior prejudicado foi o próprio País. Dentre os seus efeitos, destaque-se o fortalecimento dos privilégios de estamentos estatais que resistem a qualquer mudança.
A Polícia Federal segue os passos do Ministério Público, tentando ganhar para si maior protagonismo, como se fosse um Poder independente. Também ela é composta por micropoderes que se concretizam na ação de delegados que prestam contas apenas a si mesmos. Por exemplo, prorrogam indefinidamente investigações e inquéritos, como se fosse perfeitamente normal, pondo o investigado na posição de culpado potencial, que se vê sem defesa e desguarnecido. Novamente a justificativa consiste na luta contra a corrupção a embelezar qualquer ação, numa invasão constante dos direitos individuais e, conforme o caso, no desrespeito às prerrogativas de outros Poderes.
O Tribunal de Contas da União, de órgão auxiliar do Poder Legislativo, está, na prática, tornando-se um Poder autônomo, ao qual os outros devem prestar contas. Nada contra a formação técnica de seus quadros, muito aprimorada nos últimos anos, exemplar em seus pareceres, mas estamos diante de questões institucionais que não podem ser contornadas. Veja-se o imbróglio dos acordos de leniência quando diferentes Poderes da República se digladiam acerca de quem tem a competência final sobre a matéria, produzindo uma grande insegurança jurídica.
O Poder Legislativo talvez seja o mais desmoralizado dos Poderes, por terem vários de seus membros contas a prestar à Justiça. Acontece que a opinião pública não mais discrimina entre parlamentares honestos e desonestos, como se todos fossem iguais e pertencessem a uma mesma classe política corrupta. Pior do que o pior dos Poderes Legislativos é a ausência de Poder Legislativo.
Assinale-se, ainda, que o próprio Legislativo é responsável por sua própria perda de poder. Incapaz de resolver os seus problemas internamente, recorre a todo momento ao Supremo para que decida sobre o que fazer em cada questão pontual que se apresenta. O STF é provocado sistematicamente por parlamentares e partidos, que abdicam, assim, de suas prerrogativas, colocando-se numa posição de servidão voluntária.
O Supremo tem aproveitado o espaço que lhe tem sido ofertado, ocupando todas as brechas que se lhe apresentem. A lei, que deveria ser o seu limite, é passível de toda sorte de interpretação, produzindo uma hermenêutica criativa tendo como único suporte uma suposta luta pela regeneração nacional. Ministros brigam em público, como se suas palavras fossem a expressão de uma interpretação sacrossanta. Não há sacralidade que aguente!
Esse Poder, por sua vez, é constituído por 11 poderes internos, cada um deles agindo conforme os seus próprios critérios. Como se não bastasse, ministros decidem monocraticamente qualquer questão que estimam constitucional, e mesmo ética, como se lhes coubesse decidir sobre questões de moralidade pública, independentemente de qualquer amparo constitucional.
O resultado de tudo isso é a diluição da autoridade estatal. Uma verdadeira democracia não conseguirá sobreviver a tamanha balbúrdia política e constitucional.
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Denis Lerrer Rosenfield professor de filosofia na UFRGS.
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