quinta-feira, 28 de março de 2019

*Eugênio Bucci: Devidas?

- O Estado de S.Paulo

É consenso pétreo que o que houve no Brasil de 1964 a 1985 foi, sim, uma ditadura

Na segunda-feira, o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, portou mais um despautério diante das câmeras. A propósito da aproximação da data de 31 de março, declarou que “o presidente não considera 31 de março de 1964 golpe militar”. Foi uma performance e tanto. Ao pronunciar a expressão “golpe militar”, Rêgo Barros ensaiou um realce discreto, quase imperceptível, como se pretendesse sublinhar uma inadequação. Realçando as palavras “golpe militar”, a voz do porta-voz pareceu ter a intenção de evidenciar que esse conceito não serve para definir o que houve em 31 de março de 1964.

A intenção do porta-voz ficou patente logo em seguida, quando ele arriscou um voo ontológico sobre 1964: “Ele (o presidente) considera que a sociedade reunida e percebendo o perigo que o País estava vivenciando naquele momento, juntou-se, civis e militares, e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país no rumo que, salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui (o porta-voz faz uma pausa, também sutil) que não seria bom para ninguém. E o nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas (a voz do porta-voz parece escandir as sílabas de ‘de-vi-das’, fazendo subir um grau o volume da enunciação) com relação a 31 de março 1964, incluindo uma ordem do dia patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”.

Embora a rarefação de sentido dificulte a interpretação do fraseado (a cada cinco palavras o porta-voz parece esquecer-se do motivo pelo qual iniciara a oração em que se encontra), entendemos daí que, na visão dele e de seu superior, o regime que se estendeu entre 1964 e 1985 não constituiu uma ditadura. Quanto a isso o próprio Bolsonaro já se manifestou mais de uma vez, de voz própria. Em algumas ocasiões ele se referiu ao período ditatorial como um “regime com autoridade”. Agora o porta-voz vem agregar mais elementos a essa visão personalíssima da História.

Prestemos a “devida” atenção a esses novos elementos. As palavras do porta-voz não são propriamente notícia (sobretudo numa semana de outras turbulências, como os indícios de que a base do governo se vai esfarelando ao vento), mas escancaram, como poucas vezes se escancarou, a incompatibilidade entre a crença nebulosa que vai na cabeça presidencial e o fundamento axiológico que põe de pé a coerência interna da Constituição federal de 1988.

A Constituição de 1988 tem defeitos graúdos, já sabemos. Ela abriga contradições internas, tendo abrigado pontos de vista discrepantes. São inúmeras as tensões entre um artigo e outro, assim como são muitos os anacronismos e os excessos verborrágicos, em meio a um certo entulhamento de disposições tratando de assuntos que jamais deveriam ser regulados pelo texto constitucional (e sim por legislação ordinária). Mesmo assim, a Constituição de 1988 resiste. Por que resiste? A explicação é simples: ela sobrevive e vige porque está assentada sobre um consenso pétreo. Esse consenso é a premissa de que o que houve no Brasil de 1964 a 1985 foi, sim, uma ditadura que destroçou a vigência dos direitos humanos, a normalidade democrática e a transparência na administração pública, triturando cada um dos fundamentos da ordem constitucional que existia antes, e isso num grau tão profundo que o Brasil, depois de derrubar a velha ditadura, precisou providenciar uma nova Constituição. Foi a partir desse consenso que nasceu a Carta de 1988, até hoje vigente.

Em outras palavras, o período democrático que vivemos desde 1988 tem este pilar fundamental: a certeza de que o regime militar instaurado em 1964 foi uma ditadura e de que essa ditadura precisou ser posta abaixo para que pudéssemos erguer uma ordem baseada na liberdade, no respeito à dignidade humana e na democracia.

Nesse contexto, ao dizer que o golpe militar de 1964, na presidencial opinião, não foi um golpe, o porta-voz planta minas terrestres no alicerce da Constituição que temos. Quando diz que, graças ao golpe que não é golpe, o Brasil se livrou de ter hoje um governo “que não seria bom para ninguém”, está dizendo que os tiranos fardados que cassaram dos brasileiros o direito de votar para presidente e para governadores sabiam resolver sozinhos os impasses que o conjunto dos brasileiros não tinha competência para resolver. Logo, ele diz, com desinibida clareza, que, em certas situações, a democracia não é solução e que, sempre na opinião presidencial, há um erro originário na Constituição de 1988: o erro de ter tentado corrigir o estrago produzido pela ditadura militar. Segundo a locução da voz do porta-voz, é preciso revogar o princípio basilar da Constituição de 1988 e reabilitar o método, o autoritarismo e a violência da ditadura que não foi ditadura. Para ele, o que está fora de ordem não é a ditadura que torturava dissidentes políticos e dava sumiço em cadáveres, o que está fora de ordem é a ordem democrática que chama de ditadura a ditadura que, para o presidente, não foi ditadura. Eis por que, coerentemente, o presidente da República manda comemorar o golpe de 1964 como se não fosse golpe.

Por sorte, ou por dever de ofício, algumas vozes na Defensoria Pública da União e no Ministério Público Federal contestaram a voz do porta-voz. Essas vozes têm razão. A ordem emitida pela Presidência da República para que se façam as “comemorações devidas” do golpe talvez incorra em ofensas à lei e à Constituição. A ofensa maior, porém, não é a que se perpetra contra a norma jurídica, mas a que se lança contra a cultura democrática. Este governo, que não construiu nada positivo até aqui, tem sido efetivo em erguer um muro. Tijolo por tijolo, constrói uma obra só: uma barreira entre os cidadãos brasileiros e um regime de liberdade, que vai ficando para trás.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

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