O Estado de S. Paulo
A boçalidade registrada em Nova York é constrangedora para nossas elites
Provocou em muita gente um sentimento de
“vergonha alheia” a boçalidade da comitiva presidencial em Nova York.
As peripécias envolvendo a comitiva
presidencial para participar da Assembleiageral da ONU em Nova York demonstram que
boçalidade é contagiante. É até possível por hipótese admitir que um político
disputando votos, como é o caso de Jair Bolsonaro, calcule ganhar vantagem
eleitoral com comportamentos boçais em público. Faz tempo que “tosco” virou
“autêntico” (Collor dizia ter aquilo roxo).
Também por hipótese pode-se admitir que ministros de Estado que fazem gestos obscenos para manifestantes (o da Saúde) ou macaqueiam símbolos usados em campanha política pelo presidente (o das Relações Exteriores) – como aconteceu em Nova York – jogaram fora compostura e decoro para agradar ao chefe. Puxa-saquismo e apego ao cargo são reconhecidamente parte da condição humana. Talvez imperdoável, mas compreensível.
Não é por acaso que o mundo empresarial
adaptou da política a expressão “cultura corporativa” para descrever como uma
figura de comando (um CEO, por exemplo) é capaz de moldar estruturas
hierárquicas ao seu estilo e, o que é mais importante, seu modo de pensar.
Basta constatar que não só ministros forçosamente metidos na política, como
Paulo Guedes, mas também alguns considerados “técnicos”, abraçaram teorias
boçais de conspiração que sustentam o universo paralelo de Bolsonaro.
Na verdade, o fenômeno da boçalidade
contagiante é muito mais amplo e profundo. Já foi tratado na ciência política
como “princípio da comunicabilidade”, e o que aconteceu em Nova York é parte
dele: são processos pelos quais elites sociais deixam corroer seus valores e
acabam vencidas pelo “simples” (no caso, boçal) na conformação do seu universo
de pensamentos. Numa imortal passagem literária, é a exclamação de Euclides da
Cunha de que “Canudos não se rendeu!”
Em outras palavras, é a admissão quase
impossível de ser feita em público por elites (na época de Euclides, as tais
“classes letradas”) da falência de suas maçarocas ideológicas e a vigência das
crenças (teorias conspiratórias) e o modo bronco e rude de dizer “as verdades”.
Não, não se trata de forma alguma de comparar Bolsonaro a Antonio Conselheiro,
e muito menos o arraial de Canudos às redes sociais bolsonaristas. Seria uma
injustiça com Conselheiro e Canudos.
Mas, sim, de registrar o fato de que o modo
de pensar de elites foi vencido pela boçalidade que elas julgaram poder
comandar. Provocou em muita gente um sentimento de “vergonha alheia” a boçalidade
da comitiva presidencial em Nova York – que abrange dos comportamentos
descritos acima à ideia profundamente boçal de que algo mudaria na péssima
imagem externa do Brasil a partir de um discurso na Assembleia-geral da ONU
inconsequente, dirigido em primeira linha aos convertidos do bolsonarismo.
Boa parte das elites sociais brasileiras
repudia o que viu e ouviu em Nova York e se sente ofendida diante da, no
mínimo, reiterada desonestidade intelectual dos que falaram pelo Brasil. Esse
sentimento de “aquilo não somos nós” foi aprofundado pela noção do ridículo de
ver o País virar piada pronta – a de ter na comitiva presidencial um ministro
da Saúde transformado em potencial “super spreader” do vírus que o chefe
minimizou, e a delegação brasileira em risco para o resto do mundo na sede da
ONU.
A vergonha é genuína. Em parte ela surge de
uma constatação profundamente desagradável: a de que nossa sociedade nem de
longe venceu desigualdade, miséria e injustiça social em todas as suas formas.
Ao contrário do que possa parecer, porém, a frase “Canudos não se rendeu” não é
a descrição do triunfo da ignorância, ou uma denúncia do atraso social.
Era um duríssimo recado de Euclides da
Cunha (que alguns descreveram como um “conservador lúcido”) às elites da sua
época: vocês não conseguiram derrotar um universo de pensamentos, vocês são
parte dele, com suas ideias pretensamente científicas e populares. Nesse
sentido, Canudos vive.
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