A impropriedade da minha parte talvez seja
elevar esse ilusionismo semântico à categoria de gramática. A concessão traduz
um sentimento de apreensão com a possibilidade de a esperteza política crescer
demais, virar bicho, engolir o dono e todos os que amarramos nossos botes à
deriva ao seu velho navio.
Incapaz de traduzir racionalmente esse
sentimento nos limites de minhas palavras, apelo a Chico Buarque de Holanda,
poeta dos maiores da nação, a grande ausente naquele woodstock de fragmentos:
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Expropriado por uma roda-viva: assim me senti no dia da posse. Aliás, assim me sentia desde que a dita transição arriou suas malas. Com vontade de embarcar num vapor barato, eu e uma obsessão política.
O mal-estar com a estética da festa talvez
não seja assim tão relevante. Quem sabe um despiste, um pretexto, um bode
expiatório para justificar um desânimo que é, antes de tudo, político, ao ver
democracia e república divorciarem-se em público. Mas disso tenho falado bastante
nesta coluna. O dia hoje é para falar de ultrajes sem rigor. Vamos lá:
Símbolos impressionam-me em demasia. Sei
que é um erro de análise política superestimá-los assim. Com algum esforço, sou capaz de abstrai-los e
aceitar uma descrição racional da festa da posse, segundo a qual os recados
identitários ali presentes apareçam como adjetivo de alguma substância
democrática prévia, aspectos pontuais que transmitem um quê de novo a um antigo
script. Ou como um artigo indefinido, que precede o substantivo
democracia para que ele fique vago a ponto de tornar-se qualquer coisa. Mas no
fundo creio serem enganosos, por vezes perigosos, esses discernimentos entre
forma e substância, entre traje e adereços. Creio (o verbo é esse, sem retoque)
que, na real, são inseparáveis.
O populismo pairava na festa, emanado da
figura central, mas curiosamente não lembro de alguém ali ter discursado sobre
um povo, ou procurado mostrá-lo. Falava-se de vários “povos”, a começar pelos “originários”,
passando pelo pobre, pelo preto e chegando a mil comunidades imaginadas e
enumeradas por discursos negativos e agendas afirmativas. É um passo a mais em
relação ao clássico "nós x eles", que tornava maniqueísta uma disputa
por algo ainda pretendido, afinal, como objeto (poder) comum. Agora o ânimo
bélico persiste numa estética encantada pelo termo diversidade. Todos os
narcisos acham feio o que não é espelho, mas cada fragmento dessa diversidade
sem alteridade não precisa, em tese, vencer adversários a cada contexto. O inimigo
essencial, fixo, é qualquer noção de todo. Cada ator exibe seu pedaço como a
parte que lhe cabe e basta num latifúndio social dialogicamente improdutivo. A
retórica de luta de cada qual mantém o espetáculo. Arremedo estético da luta
real, cotidiana, de brasileiros e brasileiras destinados a viverem juntos,
misturados em suas dores e misérias, alegrias e grandezas, através de
pensamentos, palavras e obras praticados na roda-viva de todo dia, através de
conflitos e cooperações, decididas por conciliação ou por força maior. Como se
puder e Deus quiser.
Sei que tudo isso poderia ser visto mais
benignamente, com dramaticidade mais modesta, através do uso de termos
politicamente menos arriscados, como sociedade e cultura. E uma vez assim
visto, ser analisado, compreendido, acolhido, processado e incorporado ao
acervo do tempo que anda. Sendo bossa nova, isso é muito natural. Mas a
tradução disso na política é delicada. Precisamos prestar atenção porque
desafinar aí pode ser fatal. Aceito o
argumento, mas não me altere o samba tanto assim!
A imagem de JK passando a faixa
presidencial a Jânio Quadros e a da repetição do ato, quatro décadas depois (no
meio delas uma ditadura que durou duas), seguido de um abraço caloroso entre
FHC e Lula devem ser remetidas ao museu, antes desses gestos tornarem-se, de
fato, prática estável, ou devem ser resgatadas sempre, para que um dia a
estabilidade vire tradição? Alguma vez, após o último dia 01.01, uma foto de
posse será valorizada se ao lado do presidente não houver um(a) representante
dos povos ditos originários? Presidentes a serem retratado(a)s doravante serão
suseranos, entre povos e poderes essencialmente distintos, não importa a carga
de legitimidade política que mandatários recebam das urnas ou de alianças lúcidas
e leais àquelas? A entrega da faixa por entes fixos do social e aquela linha de
frente da foto são conjunturais ou são fatos consumados que vieram para ficar?
São fragmentos de uma unidade que está sendo quebrada ou verdades reveladas
contra uma sempre falsa unidade? Sejam uns ou outras, podem/devem ser
amalgamado(a)s pela mobilidade social e política de uma democracia em processo ou
podem/devem permanecer como fragmentos ou como idealizações de povos distintos?
Sem respostas conclusivas, apenas
compartilho uma percepção intranquila de que o Brasil atual carece de uma
consciência conservadora em cima, para que milhões de consciências
conservadoras persistentes que vivem desagregados embaixo não sejam
duradouramente capturados por aventureiros peritos em lançar mão de símbolos e
instituições nacionais. O risco que se corre é, como na foto histórica de
01.01.23, a representatividade social querer ofuscar (no limite dispensar) a
representação política da nação e dos seus cidadãos, fazendo prevalecer
hierarquias imaginárias, assincréticas e idiossincráticas. Mal nos livramos, pelas
urnas, do espectro destrutivo de umas e já chocamos ovos de outras, no nosso
quadrado festivo que mede só 51%, mas é deslumbrante e deslumbrado.
Assumo eventuais exageros, mas no momento
vejo mais perigo em silêncios do que naqueles. Exageros, nesse caso, são
sequelas de vacinas buscadas contra um futuro arrependimento por coisas não
ditas. Reconheço aqui, sem precisar acompanha-lo em tudo, a atitude de um
intelectual como Antônio Risério, que estica essa corda, e com ela não se
enforca. Mas, de novo, é Chico Buarque quem vem em socorro (talvez sem querer,
já que ele pode estar adorando essa festa, pá!) quando me sinto incapaz, como
agora, de justificar os meus exageros com minhas próprias palavras:
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Sinto-me assim implicado no que uma
esquerda de horizonte republicano deixou de responder positivamente, na década
dos 90, a sinais modernizadores dados pela coalizão partidária, conservadora e
reformista, que chegou ao governo com o Plano Real, ainda na infância da
república democrática da Carta de 1988. E implicado também no consentimento
passivo que deu ao experimento político centrífugo que veio na sequência e que terminou
fragmentando partidos ainda mal nascidos em facções decrépitas e oscilantes. A
renúncia (ou a impossibilidade) da disputa da liderança moral da esquerda teve um
preço político alto, ainda hoje cobrado, sem perdão. Sem partido e sem vontade
alguma de integrar algum, sigo vendo em partidos políticos instituições
imprescindíveis e não quero repetir o que considero ter sido um erro. Daí achar
que exageros impressionistas e críticas precoces ao que se está fazendo - por ora
em Brasília - com o mandato recebido nas urnas estão entre os menores perigos.
Para conter as críticas acena-se a uma
possível brecha que elas abririam a uma oposição de extrema-direita. Sim, o
perigo da extrema direita é real e eleitoral. Mas será tanto maior quanto for
difusa a condescendência com o populismo e o identitarismo, que, depois de
terem bloqueado o caminho de afirmação de uma esquerda republicana no Brasil,
acham-se, hoje, em coalizão de veto ao nascimento do que pode vir a ser
batizado de centro democrático, a Geni de todas as horas, como acabamos de ver.
Bóric, homem político centrado no novo
tempo, tendo a direita do seu país nos calcanhares, está precisando recorrer à
gramática cosmopolita e liberal, para - em trilha sintonizada, penso eu, com o
que propõe, por exemplo, Mark Lilla, como saída duradoura para o Partido
Democrata norte-americano - ir ao encontro da nação chilena e assim tentar
reduzir os danos causados àquele país pela onda identitária de esquerda. Não
sabemos se terá êxito, mas trata-se de um jovem vagalume que faz falta entre
nós.
Lula, centro-esquerda das antigas, não
presta atenção em Lilla (nem em Bóric) e também não liga para essas coisas do
mundo identitário, a não ser como modo de fazer delas símbolos de outras coisas.
Acha-se capaz de instrumentalizar essa “onda” para mais facilmente exercer o
governo pessoal. Trata os arautos da onda como tratava antigos bolcheviques e
guevaristas, nos primórdios do PT. O mútuo "me engana que eu gosto"
não vai funcionar com essa turma indisposta a respeitar qualquer tradição
secular e muito determinada a denunciar como maligno o próprio teatro da
representação, onde Lula respira. Onde nação e sociedade respiram, mesmo ameaçadas
por nacionalismos e populismos politicofóbicos.
Antes que um desquite ruidoso aconteça e
seus estilhaços se espalhem, é preciso refletir - como uma das hipóteses
legítimas de desdobramento da necessária transição política que ora se inicia -
se o Brasil não precisará buscar, num futuro imediato (leia-se 2026), um porto
fora da esquerda. Se para sair da rua estreita em que nos metemos desde 2014 e
que foi dar no beco de 2018 não vai ser preciso que haja partidos e lideranças
que plantem, desde já, devagar, mas sempre, o que não cairá do céu de Brasília.
É ver se construir uma oposição democrática ao atual governo não está tão legitimamente
na ordem do dia quanto a construção dele mesmo. Penso que sem ambos, governo e
oposição democráticos, quiçá republicanos, não haverá reconstrução, muito menos
pacificação de nada que se possa chamar de país.
* Cientista político
e professor da UFBa.
6 comentários:
Palavreio danado!!!
Cientista, politico.
Hum...
Baiano.
Ah, sim, sim.
Confesso a minha incapacidade de compreender o que este senhor tentou transmitir. Texto confuso, desconexo e sem conteúdo. A percepção é de que parece alguém desanimado e que torce para tudo dar errado sem dar voto de confiança ao governo que mal começou.
Que a “Roda Viva” leve os pessimistas de plantão e os reacionários bolsominion para bem longe!
Concordo com o anônimo
No início do comentário do meio pro fim não entendi o anônimo.
O professor Dantas se diz impressionado por símbolos. A festa da posse de Lula foi mais do que tudo simbólica, e isto certamente impressionou o articulista, bem como a exaltação (exagerada?) da "diversidade" (como se esta palavra dissesse tudo e significasse muito) e dos "vários povos" (ao invés do velho povo brasileiro que o professor não viu representado) simbolizados na posse. Por outro lado, ele desconfia do PT como supremo representante da Esquerda e que foi incapaz nas 2 gestões de Dilma de comandar adequadamente governos supostamente esquerdistas. Concordo com a maioria das suas colocações, embora reconheça que sua terminologia não é a mais simples, mas achei o texto bem escrito e preciso, ainda que meio pessimista com o - ou muito desconfiado do início do - novo governo.
O professor faz piruetas gramaticais um tanto envelhecidas para tentar entortar a roda da História. Como se Lula, a esquerda que nos coube, as questões identitárias, a divisão secular do país fossem fruto do desejo de um anjo vingador e não das forças e classes sempre em disputa.
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