Folha de S. Paulo
Revolta contra a noção de Estado pega atalho
em distorções e justa insatisfação para alimentar uma ilusão
Outro dia, um deputado do Partido Novo foi
ao plenário e disse que o Estado não fazia nada pelo Rio
Grande do Sul. Para ele, os gaúchos deveriam ser deixados em paz para
resolver o problema. Depois, citou uma frase falsamente atribuída a Thomas
Jefferson, flertou
com um slogan separatista e voltou para o gabinete.
O garoto-propaganda do anarcocapitalismo levou para a tribuna um papo que ganhou tração nas redes durante a tragédia. A despeito do enorme aparato oficial empregado na região, quem estaria socorrendo a população seriam só voluntários, empresários e influenciadores.
Em catástrofes dessa magnitude, uma máquina
pública eficiente vira exemplo de heroísmo. É também nesses casos que se
destacam os defeitos do aparelho estatal, a lentidão provocada pela burocracia
excessiva e a incompetência de certos agentes. Tudo isso aparece na tragédia
gaúcha, mas não conta toda a história.
O mutirão de gente disposta a entrar nas
enchentes e enviar doações já se tornou um marco desse desastre, numa
mobilização possivelmente inédita. Ainda assim, é impossível tratar como
empreitada privada uma operação que envolve aeronaves militares, forças de
segurança de outros estados e verbas bilionárias.
Parte da mensagem se espalha com base em
falhas reais de uma máquina despreparada. Outra parte vem carregada por
desinformação, propaganda e interesses políticos.
O fato curioso é que essa turma não parece
disposta a trabalhar por um Estado mais eficiente. Prefere alimentar uma
revolta contra a própria noção de Estado —um sentimento que toma atalho na
justa insatisfação com a burocracia estatal, a corrupção e a tributação.
A fantasia da gestão privada seria um sonho
para poucos. Alguém desembolsaria bilhões para estradas, contenção de enchentes
e enormes fazendas. Poderia inventar um processo coletivo para escolher o
traçado de rodovias e definir o que preservar antes de plantar. Talvez fosse o
caso de designar um grupo de administradores, quem sabe por votação.
2 comentários:
Excelente, é bem isto!
Sei.
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