O Globo
Não se trata apenas de tempestade. Há o
aumento do calor, a alta do nível dos mares, tema que que nos atinge seriamente
Durante muitos anos, falei em aquecimento
global, preparação das cidades, resiliência, essas coisas. Muito mais eficaz
que todos os meus argumentos é a imagem de um cavalo de 350 quilos no telhado
de um bairro inundado de Canoas, no Rio Grande do
Sul. A imagem de Caramelo — esse é o nome que lhe deram nas redes
sociais — emocionou muita gente, até pelo delicado resgaste realizado pelos
bombeiros.
Destaco essa imagem na tragédia porque ela
tem a força de desarrumar um pouco nossa lógica, provocar um rápido
curto-circuito mental e, consequentemente, abrir a cabeça para a realidade que
não conseguimos ver.
Escrevi um longo artigo sobre as mudanças climáticas para a revista da Academia Brasileira de Letras e usei como título o verso de Bob Dylan: Alguma coisa está acontecendo, mas você não sabe o que é. A imagem do cavalo no telhado economizaria dramaticamente meus argumentos.
Sou muito ligado a esses acontecimentos que
mudam subitamente nosso modo de ver. No passado, escrevi um artigo sobre o
goleiro colombiano Higuita. Ele estava prestes a defender uma bola à meia
altura, e o normal seria abraçá-la junto ao peito. Higuita deu um mergulho
apontando a cabeça para o chão e, num golpe, rebateu a bola com as duas pernas
levantadas. Na época, usei como um exemplo de criatividade. Acredito que os
mestres zens usem muito essas mexidas bruscas no nosso modo de ver as coisas
para passar suas lições. Os próprios koans desafiam o senso comum.
A verdade é que o Brasil está em cima do
telhado, não apenas Caramelo. Ou nos adaptamos celeremente às mudanças
climáticas ou podemos ser destruídos. Não se trata apenas de tempestade. Há o
aumento do calor, a alta do nível dos mares, tema que nos atinge seriamente.
Quem quiser ter uma ideia, basta visitar a Praia de Atafona, no Estado do Rio.
Há problemas em Pernambuco, Santa Catarina e muitos outros lugares. No caso do
Rio Grande do Sul, que espero supere o mau tempo a partir de hoje, há o grande
desafio da reconstrução.
Um caso a estudar é a reconstrução de Nova
Orleans. Muitos pontos destruídos ainda têm marcas para que as pessoas não
esqueçam. Foi erguido também um Memorial do Katrina, nome do furacão que
devastou a cidade em 2005.
O comportamento dos políticos tem de mudar
rápido. Apenas três deputados gaúchos destinaram verbas de prevenção às
enchentes. A Prefeitura de Porto Alegre não investiu um centavo nesse item em
2023.
Como deputado, participei dos projetos que
versam sobre recursos hídricos. Criamos os comitês de bacia, instrumento
adequado para gerir bacias hidrográficas. Os prefeitos fazem plano de
desenvolvimento sem levar em conta os vizinhos, o conjunto da bacia.
As mudanças climáticas exigem uma grande
virada em nossa cabeça. O comportamento suicida do Congresso, a tendência de
empurrar com a barriga, mesmo entre os que reconhecem a crise climática — tudo
isso apenas precipita o desastre.
As enchentes no Sul são um aprendizado. Gosto
de planejar cartilhas para esses tempos e percebi um novo item muito
importante: não deixar os bichos para trás. Não é apenas por causa de Caramelo,
mas de milhares de cães e gatos, alguns certamente mortos pela força das águas.
Ficar sem água potável no meio de uma grande
inundação também é um problema singular. Teremos de pensar nisso: kits de
descontaminação, usinas que produzam água limpa. Na verdade, é muita coisa para
pensar, um mundo novo a planejar. Precisamos ter a ideia de onde estão as
grávidas, quem precisa de hemodiálise, como conservar insulina com o colapso
das geladeiras.
Infelizmente, um problema de saúde,
solucionável a curto prazo, me impediu de estar no Rio Grande do Sul.
Brevemente espero estar lá e também me dedicar, dentro dos meus limites, a essa
gigantesca transição que o país precisa realizar.
Um comentário:
Muito bom.
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