Folha de S. Paulo
O maquinário das democracias atuais está
caindo frequentemente nas mãos de mecânicos ineptos
Para Giovanni
Sartori (1924-2017), a democracia consiste em um maquinismo e um
conjunto de maquinistas que têm que pôr a máquina para funcionar. Mas quando
nos queixamos da democracia e denunciamos sua crise geralmente focamos o
maquinismo e esquecemos os operadores. Ou atacamos os maquinistas e esquecemos
o maquinário.
O maquinismo é a estrutura constitucional do país. Embora defenda que o maquinário das democracias atuais é "decente", embora esteja "caindo frequentemente nas mãos de mecânicos ineptos". Sartori é cáustico em relação a nossa Constituição, que é repleta de "dispositivos quase suicidas" e "promessas irrealizáveis". (Sim, a carta de 1988 continha um dos mais bizarros dispositivos já incorporados a uma constituição: o tabelamento da taxa de juros).
Mas o núcleo duro do nosso maquinário é o
presidencialismo de coalizão com um Poder Executivo constitucionalmente forte,
e com forte delegação de poderes ao Judiciário e Ministério Público. Não tenho
dúvidas que o nosso maquinário é "decente": na realidade, o
presidencialismo multipartidário é a forma modal de sistema de governo no mundo
atualmente.
Ele produz, sob certa condições,
governabilidade e bom governo. Os múltiplos pontos de veto garantem
inclusividade —muitos atores participam dos processos decisórios— e certa
irreversibilidade quando as decisões são tomadas (deixemos de lado por um momento
a imprevisibilidade criada pelo STF). O sistema se move de forma lenta e
ineficiente. Como um transatlântico. Mas por isso mesmo não permite
transformações radicais, como aconteceu sob Bolsonaro.
O risco de imobilismo é perene, sim. As
democracias sempre produzem bom governo em um sentido negativo porque impedem a
tirania. Mas não são sinônimos de bom governo. As escolhas coletivas sob a
democracia podem produzir resultados pífios. Mas há um mecanismo que
potencialmente pode permitir correção de rumos —eleições novas—, e alternância
de poder; (mecanismo que sob o parlamentarismo quando não temos mandatos fixos
para o Executivo é eficiente). Como já
discuti neste espaço, o mau governo pode resultar também de crenças
tecnicamente infundadas que produzem resultados pífios nas políticas públicas.
A máquina também exige um operador eficiente,
como insiste Sartori. Para forjar consensos e maiorias. Aí está o nosso
principal desafio: não temos tido operadores que combinem capacidade de forjar
coalizões efetivas, crenças tecnicamente fundadas, e apoio popular. Ausência de
confrontos institucionais paralisantes, portanto, governabilidade, não equivale
a bom governo.
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