sábado, 16 de maio de 2009

Corre amor e sangue em Cannes

Luiz Carlos Merten
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Jane Campion traz o romântico Bright Star e Chan-wook o pesado Thirst

Embora tenha recebido a Palma de Ouro - por O Piano -, o australiana Jane Campion não é exatamente uma autora reverenciada pelos aficionados do maior festival do mundo. Principalmente as mulheres que exercem o ofício de críticas acusam Jane de transformar sua perspectiva ?feminina?, não necessariamente feminista, em filmes de ?mulherzinha?. A polêmica muito provavelmente será retomada por causa de Bright Star (Estrela Brilhante), mas o novo filme da diretora é muito melhor que os mais recentes que ela fez.

Bright Star foi muito aplaudido no fim da sessão de imprensa, ontem pela manhã. Jane Campion ousou fazer um filme romântico, sobre poesia, na contracorrente do cinema atual. Ela se baseou na relação amorosa do poeta John Keats com Fanny Brawse, em Londres, no começo do século 19. Jane não fez aquilo que se convenciona chamar de ?biopic?, uma cinebiografia. Ela adota o ângulo de Fanny para contar essa história que parece resumir o destino trágico dos grandes amores, aqueles bem românticos.

No começo, Keats já é um jovem poeta atormentado, que sofre com a doença do irmão e a falta de reconhecimento para seu trabalho. Fanny tem um dom para a costura. Ela produz as próprias roupas e é aquilo que hoje se chamaria de ?fashion?. Sentem-se atraídos, e ela pede que ele lhe ensine a ?ouvir? poesia. Amam-se, mas ele não tem recursos e não pode ambicionar ao casamento. Parece uma história de Jane Austen, só que na perspectiva masculina. Os que não pertencem às classes privilegiadas sofrem na Inglaterra dos aristocratas.

Para complicar, Keats tem um amigo, também poeta, que tenta salvá-lo de Fanny. É curioso como François Truffaut, um romântico, via o amor como o embate entre o gesto impulsivo e a palavra consciente. Jane Campion cria personagens muito conscientes do poder da palavra, mas Keats nunca se deixa levar pelo impulso. Ele próprio diz que tem ?consciência?. O amor nunca se realiza, no sentido físico. Jane fez um filme intimista de grande beleza. Seu elenco ajuda, e como! Ben Whitshaw tem o perfil romântico e angustiado que o personagem exige. Abbie Cornish bem poderia se converter na musa deste festival. Afinal, foi para sua personagem que Keats dedicou o poema famoso que dá título ao filme. Ela é linda, intensa. No filme, aparece com os cabelos escuros. Na coletiva, apareceu ao natural, loira. Como se filma a poesia? "Com inteligência e sensibilidade", respondeu Abbie. Numa carta, Keats diz à amada que gostaria que fossem borboletas para viver seu frágil amor durante três dias de verão. Ao lado de Fanny, valeriam mais do que 50 anos de uma vida medíocre. Essa espécie de exaltação - mas contida, paradoxalmente - faz a força de Bright Star.

Um filme como esse é o oposto de Thirst, This Is My Blood, do sul-coreano Park Chan-wook, que passou anteontem na competição. Cineasta cult, principalmente por Badboy e Lady Vingança, Chan-wook quis renovar a tradição do filme de vampiros. Já foi dito aqui que o festival deste ano celebra a diversidade de gêneros, estilos e até mídias. O filme de vampiros de Chan-wook é bizarro, para dizer-se o mínimo. O protagonista é um padre que se submete a uma experiência, quase morre e é forçado a passar por transfusões de sangue. É assim que ele vira vampiro, mas, talvez por ser padre, mais sujeito à ?compaixão?, ele só suga o sangue de suicidas. Transformado em transgressor, ele se torna amante de uma mulher que também vira vampira, mas ela, pelo contrário, é a lady vingança do filme anterior do diretor.

Correm rios de sangue no filme e Park Chan-wook não recua diante dos maiores excessos. Beba, Este É Meu Sangue não é estilizado como os filmes anteriores do diretor. É longo, 2h20, e dá a impressão de não ter fim, recomeçando várias vezes. Houve um divórcio na sala. Um espectador, no meio da sessão, sentiu-se mal e teve de ser carregado. Outro, sentado do lado do repórter, levantou-se indignado e saiu xingando. Os jornalistas jovens aplaudiram no final, os mais velhos saíram com cara de nojo, mas ninguém vaiou.

Ontem à tarde ocorreu uma sessão especial de Sapatinhos Vermelhos, Red Shoes, o clássico de Michael Powell e Emeric Pressburger que passou por uma restauração. O filme, curiosamente, é citado por Francis Ford Coppola em Tetro (com outro trabalho da dupla Powell/Pressburger, Os Contos de Hoffman). Martin Scorsese veio falar sobre a necessidade de se preservar o patrimônio da história do cinema. Na Croisette, a seção Cannes Classics é o território por excelência desse resgate. Ontem, abrindo Cannes Classics, passou Victim, de Basil Dearden, de 1961, lançado no Brasil como Meu Passado Me Condena. Dirk Bogarde faz o advogado que arrisca a carreira (e o casamento) para denunciar a chantagem a que o expõe a sua condição de homossexual que não saiu do armário. Na Inglaterra da época, o homossexualismo era considerado crime, segundo leis que remontavam à época da rainha Vitória. O impacto social do filme foi tão grande que levou a uma mudança da lei. Muitos filmes tentaram mudar o mundo. Este conseguiu e, como cinema, se mantém forte. Considerado um ?artesão?, o inglês Derarden está sendo redescoberto. Berlim, em fevereiro, resgatou Kartum, com Charlton Heston e Laurence Olivier, na retrospectiva Bigger than Life, sobre os filmes em 70 mm. Mas a obra-prima de Dearden não é nenhum desses filmes e sim o policial Safira, a Mulher Sem Alma, sobre o racismo na repressora sociedade inglesa por volta de 1960.

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