quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Míriam Leitão - Projeto certo na hora incerta

- O Globo

A autonomia do Banco Central é um projeto esperado há muito tempo, mas ontem parecia que a Câmara dos Deputados havia entrado numa realidade paralela. O Brasil está sem orçamento, no meio de um recrudescimento da pandemia, milhões de brasileiros não sabem que dinheiro terão no fim do mês, mas para a equipe econômica e o novo comando da Câmara o fundamental é a autonomia do Banco Central. Mesmo para quem sempre defendeu esse formato institucional para a autoridade monetária, parecia delirante.

O debate não fez sentido também. Os governistas diziam que a autonomia vai garantir a queda dos juros. As taxas nunca estiveram tão baixas na história e devem começar a subir em mais duas reuniões porque a inflação teve uma alta maior do que o BC esperava.

O texto aprovado é ruim e o relator Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) não entendeu ainda qual é o papel do Banco Central. Mas para o Ministério da Economia o importante é dar a impressão de que o encalacrado projeto de reformas está andando. Não está. No Senado, o projeto recebeu um acréscimo que cria uma dissonância. “O BC buscará o pleno emprego”, diz o texto. E o relator acrescentou em seu relatório. “Esta é, sem dúvida, mais uma grande conquista para as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros, que se verão protegidos por um órgão governamental.” Suas únicas missões têm que ser garantir a estabilidade da moeda e o equilíbrio do sistema financeiro, que ele fiscaliza. Desta forma, indiretamente ajudará os trabalhadores. Não pode fazer uma política de fomento de emprego porque não é seu papel e conflita com sua missão. Essa verdade aparecerá agora neste semestre: os juros subirão no meio da elevação da taxa de desemprego.

O assunto entrou para o primeiro da pauta da gestão Arthur Lira porque era mais fácil do que discutir qualquer projeto que implique em corte de gastos. A PEC emergencial, por exemplo, propõe congelar salário mínimo, a correção das aposentadorias, e os salários dos servidores em caso de crise fiscal como a que vivemos. Se fosse aprovada agora, só poderia valer para os reajustes do ano que vem, ano eleitoral. A autonomia do BC pode ser comemorada pelo mercado que, com muita liquidez, demanda otimismo.

O PT lutava ontem contra o projeto com os clichês de sempre. O BC ficaria entregue aos banqueiros, capturado pelo mercado financeiro. O projeto seria um fanatismo liberal. Quando o ex-presidente Lula assumiu a Presidência ele nomeou um ex-presidente de banco estrangeiro para assumir o BC. Henrique Meirelles havia sido presidente do Banco de Boston, fora eleito deputado pelo PSDB e foi para a direção do Banco Central. Seu primeiro movimento foi subir a taxa de juros, que já estava em 25%, para 26,5%. Ele demoliu as desconfianças em relação a atuação do BC e em junho começou a derrubar as taxas. Durante os oito anos que ficou no cargo foi pressionado pela bancada do PT na Câmara. Lula o manteve no posto. Ele comandou a travessia da crise de 2008 e o país retomou o crescimento em 2010.

No governo Dilma, o BC derrubou os juros de 11,25% para 7,25%, quando a inflação já estava começando a subir. Deu rebote. A Selic teve que ser elevada para 14,25%. Ilan Goldfajn, no governo Temer, iniciou a redução, após a derrubada da inflação que havia chegado a dois dígitos. E a entregou em 6,5%. O atual presidente Roberto Campos Neto levou a taxa aos níveis atuais.

A conclusão dessa história é que o BC tem tido autonomia de fato, em alguns governos, e nesses momentos ajudou o país a atravessar crises e pavimentar o crescimento. Mas o fez quando cumpriu bem o seu papel de defender a moeda. O primeiro projeto de independência do Banco Central foi de autoria do então senador Itamar Franco, em 1989. Nos 27 meses em que governou o Brasil teve três presidentes do BC. Com dois ele brigou, Gustavo Loyola e Paulo Cesar Ximenes.

Donald Trump nomeou Jerome Powell, mas mesmo assim entrou em conflito com ele. Powell continuou seu trabalho porque o Fed é independente. Na Argentina, o BC era independente, mas em 2010 a presidente Cristina Kirchner conseguiu demitir Martín Redrado. Jair Bolsonaro tenta dominar todas as instituições e fez isso até com a Procuradoria-Geral da República. Esse projeto conterá seus ímpetos. Tem, portanto, valor, mas não era nem de longe a prioridade do momento.

 

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