Correio Braziliense
A utilização perversa de algoritmos tem servido
para embaralhar a consciência cívica e enfraquecer a democracia representativa,
além de fomentar a violência na sociedade, inclusive nas escolas
Fisiologismo, nepotismo e patrimonialismo,
cuja mais perfeita tradução é o chamado “orçamento secreto”, fazem parte da
pequena política que move o dia a dia do Congresso: as disputas parlamentares
por viagens e apartamentos; as articulações de interesses privados, em
detrimento das políticas públicas, nos seus corredores; as intrigas de bastidor
em disputas por verbas e cargos no governo; a perversa subsunção dos partidos
pelas suas bancadas.
Nesta semana, tudo isso estará em segundo plano, quiçá pelos próximos meses também, porque os grandes interesses da sociedade voltaram à pauta. Por exemplo, a Câmara, ontem, aprovou o pedido de urgência para a votação do projeto de lei das fake news (PL 2.630/2020), que regula a atuação das chamadas big techs no Brasil, assunto já tratado aqui, em 19 de abril, na coluna intitulada “Ministro quer enquadrar as big techs na Constituição”. A votação do requerimento permitirá que a matéria seja votada diretamente no plenário da Câmara, na próxima semana, depois de três anos de tramitação nas comissões técnicas da Casa do projeto originário do Senado. Foram 238 votos a favor e 192 contrários, depois de uma manobra da bancada bolsonarista, liderada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para impedir a votação da urgência. Esse resultado mostra que haverá disputa dura.
Essa é a primeira agenda estratégica para a
democracia brasileira em pauta no Congresso. Um exemplo do que é a grande
política trata da fundação e conservação do Estado, da manutenção de
determinadas estruturas econômico-sociais ou sua destruição. O conceito de
hegemonia do pensador italiano Antonio Gramsci é bastante reconhecido, porque
descreve como o Estado usa, nas sociedades ocidentais, seus aparatos
ideológicos para conservar o poder: a religião, a escola, os meios de
comunicação etc. No seu conceito de hegemonia, porém, o pleno exercício do
poder político está associado à liderança moral da sociedade.
Numa leitura reacionária dessa abordagem,
por essa razão, a extrema direita vê a ciência, a educação e a cultura como
ameaças, atua no sentido de neutralizar o papel de cientistas, intelectuais e
artistas na construção de uma sociedade democrática, do desenvolvimento
sustentável, do acervo técnico-científico e da identidade cultural do país.
Mesmo que para isso seja necessário recorrer à força.
O jornalista e cientista político da
Universidade de São Paulo (USP) Oliveiros S. Ferreira, já falecido, escreveu um
livro sobre o conceito de hegemonia no qual se remete à Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648), que conflagrou a Europa. Nela, um pequeno grupo de 45 cavaleiros
húngaros, com suas armaduras, durante seis meses aterrorizou o condado de
Flandres, a região flamenca da Bélgica. Repete uma indagação de Gramsci sobre
esse episódio: como o conseguiram? Como e por que o grande número, mais forte,
se submete ao pequeno?
Golpismo
Ideólogo do pensamento conservador no
Brasil, Oliveiros Ferreira foi um estudioso do protagonismo dos militares na
história republicana e crítico do castilhismo golpista. Num artigo para o
jornal O Estado de S. Paulo, de 26 de junho de 1988, intitulado “O reconhecimento
da derrota”, ele resgata uma carta do general Góes Monteiro ao jurista liberal
Sobral Pinto, na qual o então ministro da Guerra, em abril de 1945 — ou seja,
pouco antes do fim do Estado Novo —, reconhece a derrota do “partido fardado”
diante de uma nação “que não compreendia e que nunca poderia compreender”.
Segundo ele, porque trouxera da Escola Militar “um modelo de tirania
esclarecida”.
“Eu reclamava poder, ordem, disciplina e
ardor para, em 10 anos pelo menos, como recorda V.Exa., preparar a nova elite e
poder modificar as condições de ignorância e miséria das massas, responsáveis
pelo aviltamento da prática constitucional”, lamentava o general do Estado
Novo. O ex-presidente Bolsonaro tentou mobilizar seus cavaleiros húngaros três
vezes, no 7 de Setembro de 2019, no dia da diplomação do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e no 8 de janeiro. Em nenhuma delas conseguiu que as Forças
Armadas vestissem as armaduras.
A propósito, hoje a grande política
novamente tomará conta dos debates do Congresso, com a instalação de uma CPI
Mista para investigar o que aconteceu naquele segundo domingo de janeiro, uma
semana após a exuberante cerimônia de posse do presidente Lula da Silva. A
votação de ontem, apesar da vitória do governo, mostrou uma oposição aguerrida
e numerosa, porém descolada dos interesses majoritários da sociedade e de suas
instituições democráticas. É bom lembrar que 8 de janeiro foi o resultado do
uso das redes sociais como instrumento de mobilização para a tomada do poder,
com uso generalizado de fake news e emprego de violência na ocupação dos
palácios dos Poderes da República.
Esse episódio serviu para desconstruir uma
visão política glamourosa e idílica das redes sociais e da internet como
ferramentas avançadas e absolutas da participação no jogo democrático. Pelo
contrário, a utilização perversa de algoritmos tem servido para embaralhar a
consciência cívica e enfraquecer a democracia representativa, além de fomentar
a violência na sociedade, inclusive entre crianças e adolescentes nas escolas.
É preciso mais compromisso das big techs com a ordem democrática e a construção
de um ambiente social mais saudável.
Um comentário:
Falou bonito,quer dizer,escreveu bonito.
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