• Marco Archer se declarava traficante e esperava pena de prisão, como a dos terroristas de Bali
- O Globo / Segundo Caderno, 25/01/15
Uma querida amiga conta que postou um pedido de clemência para Marco Archer e foi soterrada com uma avalanche de comentários negativos. Respondi que isso, de certa forma, é pedagógico. Remar contra a maré, com as próprias convicções. Mas não fiquei surpreendido. De Vargas para cá muita coisa mudou na sociedade brasileira, sobretudo nos últimos anos: aumento da violência, multiplicação de crimes bárbaros e dramáticos programas policiais nas rádios e TVs.
O“New York Times” registrou uma das consequências: a eleição de uma forte bancada composta de policiais e militares com a perspectiva de tornar a repressão mais severa. É a chamada Bancada da Bala. Conheço alguns deles. Mesmo respeitando seus argumentos, jamais deixei de condenar a pena de morte, sobretudo essa morte singular de Marco Archer.
Foi através de Carolina Archer que o caso me chegou às mãos. Ela sempre foi a mãe corajosa que se dedicava a salvar o filho, viajando com recursos modestos, lutando contra o desespero. Uma vez, ela chegou a abordar o chanceler Celso Amorim, num restaurante do Rio, pedindo ajuda na solução do caso. Carolina queria que a ajudasse a pressionar o Itamaraty. Fiz o que pude, mas a verdade é que o Itamaraty sempre me pareceu correto na sua tarefa de assistir um brasileiro naquela situação e distância.
Uma vez, Marco, sabendo de mim através da mãe, ligou de uma prisão de Bali. Disse que aquilo era muito confuso, e os presos pareciam uma legião estrangeira. Entre eles, e isso tornava mais confusa a atmosfera, estavam os terroristas islâmicos que explodiram uma bomba em Bali, matando 202 pessoas. Sua situação piorou quando foi transferido de Jacarta para uma ilha a 400 km de distância. Isso tornava a assistência muito cara para o Itamaraty, que trabalha com recursos limitados.
No parlamento fiz alguns discursos pedindo clemência para Marco. Sua única utilidade, talvez, foi consolar Carolina. Discursos não são ouvidos nem em plenário, quanto mais na Indonésia. Num encontro internacional de parlamentares em Turim, reuni-me com três deputados indonésios. Falei sobre Marcos. O outro brasileiro no corredor da morte ainda não tinha sido preso. Senti, pela reação deles, que não havia o mínimo espaço para contar com o parlamento indonésio. Foram gentis, mas claros o bastante para descartar um perdão. O caminho era muito estreito. Carolina morreu antes do filho. Morreu sem perder a esperança de salvá-lo. O que, de certa forma, para quem a conheceu correndo de um lado para o outro, é um consolo. Nesses anos, a violência crescente no Brasil e a ousadia dos traficantes de drogas tornaram a retaguarda escorregadia e incerta.
Na Indonésia, o horizonte se fechou com a eleição de Joko Widodo. Sua promessa de campanha: fuzilar os traficantes condenados à morte. Governos são assim, fazem promessas generosas em campanha e não as cumprem. Fazem promessas terríveis em campanha e as realizam prontamente.
A verdade é que o primeiro brasileiro condenado à morte no exterior foi executado. Alguns brasileiros e o próprio governo perderam a batalha. Eu perdi junto com ele, nos damos melhor na derrota. Considero, no entanto, uma bobagem falar em retaliação à Indonésia. E se fosse nos EUA e na China, campeões estatísticos em execuções no mundo?
Marco foi fuzilado em Nusakambangan. Numa entrevista ao repórter Renan Antunes de Oliveira, na prisão de Tangerang, confessou que sempre viveu do tráfico de drogas. Jamais se declarou inocente. Esperava pena de prisão, como a dos terroristas de Bali. Eles explodiram uma bomba no café Petit para que os turistas saíssem assustados e caíssem na explosão da bomba maior.
O episódio é um convite para olharmos a gravidade da nossa situação interna. Os deputados que buscam punições mais severas, ou mesmo a pena de morte, partem de um cotidiano cada vez mais assustador. Na mesma semana em que Marco foi fuzilado, duas crianças no Rio foram atingidas por balas perdidas; e um surfista na Guarda do Embaú, em Santa Catarina, morto a tiros por um policial militar após uma simples discussão. Os fatos vão se desdobrando, e a sensação de medo e revolta fortalece a tese da pena de morte. Só uma política de segurança e carcerária baseada na inteligência, na tecnologia e na forte aprovação na sociedade pode, progressivamente, se apresentar como resposta. Não a vejo no horizonte.
Os Estados Unidos têm alguns desses requisitos. Ainda assim, a pena de morte foi abolida em apenas 15 estados. Recentemente um homem chamado James Wood foi condenado à morte no Arizona. Agonizou duas horas após receber a injeção letal. O governo anuncia mudanças químicas na próxima. Saem midazolam e hidromorfona, entram pentobarbital e sodium pentothal.
Com um tiro no peito, em Nusakambangan, ou pentobarbital no Arizona, a pena de morte é condenável. Mas devo reconhecer: torna-se cada vez mais espinhoso defender essa tese num Brasil violento, em crise econômica e dominada por um universo político em decomposição.
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