Uma inédita aliança de partidos de esquerda em Portugal derrubou, com voto no Parlamento, o governo do recém-reeleito premier Pedro Passos Coelho, jogando o país na incerteza.
Passos Coelho no alçapão
• Em aliança inédita, esquerda derruba governo de centro-direita pela primeira vez em 41 anos
Carolina Jardim - O Globo
Foi o governo mais curto da História de Portugal. Apenas 11 dias após o primeiro-ministro conservador Pedro Passos Coelho tomar posse para o seu segundo mandato, uma aliança inédita da esquerda derrubou o governo minoritário de centro-direita, abrindo caminho para o fim da política de austeridade. Por 123 votos a favor e 107 contra, o Parlamento aprovou ontem uma moção rejeitando o programa do premier, o que causou sua demissão imediata — a primeira derrubada de um governo por moção desde a redemocratização em 1974. A queda do governo de Passos Coelho colocou Portugal de volta num cenário de incertezas, levantando temores sobre a possibilidade de o país seguir o caminho da Grécia. A formação de um governo de esquerda, no entanto, precisa ainda do sinal verde do presidente conservador Aníbal Cavaco Silva, que já se mostrou contrário a uma alternativa liderada pelos socialistas.
Num desdobramento inesperado e colocando de lado profundas divergências ideológicas, o Partido Socialista (PS) se uniu ao Partido Comunista (PCP) e ao Bloco de Esquerda (BE) para obter maioria parlamentar e apresentar uma alternativa à centro-direita. Após a aprovação da moção, o líder do PS, António Costa, destacou que o Parlamento expressou a vontade da maioria.
— O tabu terminou, o muro foi quebrado — afirmou Costa, que arquitetou a ação para derrubar a centro-direita e pode se tornar o novo premier. — Esse é um novo quadro político, a velha maioria não pode fingir ser o que deixou de ser.
O texto apresentado pelos socialistas ao Parlamento faz duras críticas às tesouradas nos gastos públicos.
“O corte nos rendimentos de trabalhadores e pensionistas, a degradação dos serviços públicos, o desinvestimento na educação e na saúde públicas, os cortes na ciência, a desvalorização salarial, a promoção do trabalho precário e o ataque à segurança social tiveram como principal objetivo não a sustentabilidade das contas públicas, mas sim a alteração da relação de forças em Portugal contra os interesses dos trabalhadores, das famílias, das classes médias e dos mais pobres”, criticou o PS no documento.
Centenas de simpatizantes do governo de centro-direita se reuniram em frente ao Parlamento, cantaram o Hino Nacional e frases de apoio a Passos Coelho, enquanto outro grupo manifestava apoio à coalizão de esquerda, comemorando as chances de corte de impostos e proteção dos benefícios sociais.
A perspectiva de um governo apoiado pelos comunistas e pelo Bloco de Esquerda preocupou investidores, provocando temores de que uma recuperação econômica frágil possa descarrilar, num país que acabou de sair de um programa de resgate internacional no ano passado. O governo de Passos Coelho alertou que recuar com a austeridade poderia colocar Portugal numa rota similar à da Grécia.
— Não precisamos imaginar as consequências. Basta olhar para a experiência recente da Grécia e o custo das suas tentativas de terminar com a austeridade. Mais recessão, mais pobreza, mais desemprego e maior dependência de empréstimos europeus e do FMI — advertiu ao Parlamento a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, acrescentando que a confiança dos investidores já estava diminuindo.
Diante da pressão e do receio do mercado — a Bolsa de Lisboa caiu 4% anteontem e 0,3% ontem — os socialistas insistem que irão respeitar as regras orçamentárias da União Europeia (UE) e que voltar a conceder maiores rendimentos às famílias deverá impulsionar a economia.
‘Presidente deve ceder à esquerda’
Após a queda do governo, o presidente Cavaco Silva iniciará um período de consultas com líderes políticos e outras personalidades do país para decidir quem será indicado ao governo. Analistas traçam três cenários possíveis: ou o presidente acaba cedendo e convida o líder do PS para formar um governo de esquerda ou mantém a coalizão de centro-direita no poder — limitada a um governo de gestão — até que novas eleições sejam convocadas.
— Cavaco Silva não tem prazo para tomar sua decisão, mas acredito que ele deve se pronunciar nos próximos 15 dias. A maioria dos analistas prevê que o presidente vai aceitar o governo de esquerda se o Partido Socialista apresentar estabilidade governista e um acordo sólido. Os partidos de centro-direita, por sua vez, poderiam fazer campanha para pedir eleições antecipadas — afirmou o analista António Costa Pinto, da Universidade de Lisboa, em entrevista ao GLOBO.
Caminhando para o fim de seu mandato, porém, Cavaco Silva não tem mais o poder de convocar novas eleições. A antecipação do pleito ficaria, então, a cargo de seu sucessor, com novas votações sendo previstas somente a partir de junho do próximo ano. O principal desafio do governo socialista, na avaliação de Costa Pinto, será conseguir cumprir o programa de recuperação salarial e, ao mesmo tempo, manter os compromissos orçamentários com a UE.
— O acordo com os partidos à esquerda é muito moderado, não tem críticas ao euro, mas é difícil cumprir. Prometem o fim da austeridade, mas também o cumprimento dos pactos com a UE: de manter o crescimento, a estabilidade e o deficit abaixo dos 3%. Uma das propostas é aumento do salário-mínimo em quatro anos e o fim dos cortes nas pensões para os aposentados — explicou.
O analista político Tiago Fernandes, da Universidade Nova de Lisboa, alertou para uma crise institucional caso o presidente não aprove o governo de esquerda.
— Se Cavaco Silva não aceitar, poderia criar um confronto que seria ruim para a democracia, além de polarizar a sociedade — advertiu.
A coalizão de Passos Coelho venceu com uma vantagem discreta de 38% as eleições de 4 de outubro — consideradas um referendo sobre a política de austeridade. Mantendo a convenção política, ele foi reconduzido ao posto na semana passada pelo presidente. Juntos, os partidos de esquerda obtiveram 50% do apoio do eleitorado.
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