quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

PEC para toda obra

Folha de S. Paulo

Em sanha eleitoreira, Bolsonaro fala em usar calote para dar benesse a servidor

Faz dois meses que Jair Bolsonaro se dedica a golpear a economia, dilapidando a ordem restante nas contas públicas a fim de diminuir sua rejeição nas urnas. Tal atitude não é rara no país, ao contrário. Mas o comportamento eleitoreiro de Bolsonaro é dos mais vulgares, sem subterfúgios.

Nesta terça-feira (16), o presidente declarou que pretende reajustar aos salários de "todos os servidores federais, sem exceção". Ainda acrescentou, sem pejo ou lógica: ‘Dessa maneira, estamos mostrando responsabilidade".

O dinheiro para a benesse do reajuste viria dos recursos criativamente criados pela PEC dos Precatórios, a proposta de emenda constitucional que prevê um calote em parte dessas dívidas, além de elevar o teto anual de gastos federais.

A matéria ainda depende de aprovação no Senado. Caso permita despesas extras da ordem de R$ 91,6 bilhões em 2022, como prevê o governismo, o dinheiro talvez não seja bastante para satisfazer aos desejos do Palácio do Planalto, do centrão e do Parlamento em geral.

Os servidores federais estão sem reajuste desde o início da epidemia. O Orçamento do próximo ano não prevê correção dos salários.

Há, sem dúvida, perdas decorrentes da inflação elevada; os trabalhadores do setor privado, entretanto, enfrentam a situação sem a garantia do emprego e com salários em média piores —quando têm ocupação. Neste momento, não se trata de prioridade orçamentária.

Do montante esperado com a PEC, quase R$ 45 bilhões seriam destinados a elevar os desembolsos do Bolsa Família, rebatizado como Auxílio Brasil. Outros R$ 24 bilhões, ao menos, serão necessários para gastos como benefícios previdenciários, que serão maiores dado o aumento da inflação.

Mais de R$ 8,2 bilhões serão subsídios, a redução de impostos sobre folha de pagamento, recém-prorrogada. Ainda R$ 5 bilhões devem ser gastos no vale-gás, à beira de ser aprovado no Congresso.

Sobrariam pouco mais de R$ 10 bilhões a serem disputados por emendas parlamentares, aumento do fundo eleitoral, reajuste de servidores etc.

O casuísmo de elevar o teto de gastos provocou uma alta ruinosa das taxas de juros, entre outros danos financeiros e para a confiança econômica. O fato de Bolsonaro agora alardear um reajuste para servidores mostra outra vez que está disposto a tudo.

No caso de problemas na tramitação da PEC, é possível que a irresponsabilidade eleitoreira redunde na aprovação de remendos piores. Um decreto de calamidade ou o emprego de créditos extraordinários, de duvidosa legalidade, podem aumentar ainda mais a despesa federal, substituindo a hipocrisia da mudança do teto.

Gênio fora da garrafa

Folha de S. Paulo

Cuba consegue sufocar protestos, mas contestação parece ter vindo para ficar

Nos últimos meses, Cuba vem conhecendo uma nova e persistente onda de insatisfação popular contra um regime que, preso ao passado, não consegue oferecer aos dissidentes nada além de repressão.

O estopim ocorreu em julho, quando milhares de pessoas tomaram as ruas de Havana e de outros pontos da ilha nas maiores manifestações contra o governo desde o começo dos anos 1990.

Os atos buscaram denunciar os apagões diários, a ausência de liberdade de expressão e a falta de alimentos e remédios, que se agravou durante a pandemia.

A ditadura respondeu a sua maneira. Um relatório da ONG Human Rights Watch apontou violações graves aos direitos humanos, como prisões arbitrárias, condições desumanas de encarceramento e abuso sexual de mulheres.

Ao todo, mais de mil cubanos foram detidos durante e após as manifestações; cerca de metade deles permanece presa até hoje.

Dando continuidade aos protestos, grupos de artistas e ativistas marcaram novas manifestações para este mês. A convocação, feita por meio das redes sociais, escudou-se num artigo da Constituição cubana de 2019 que reconhece o direito de reunião e manifestação associadas a fins lícitos e pacíficos.

Como seria de esperar, o regime não só proibiu a realização dos atos como, diante da manutenção dos protestos, armou uma verdadeira operação de guerra para evitar que as cenas de julho se repetissem.

Tanto autoridades cubanas como os meios de comunicação oficiais dedicaram semanas a desqualificar a marcha. Repetindo fórmulas mofadas, acusaram o movimento de ser organizado e financiado pelos Estados Unidos.

A campanha de desmobilização foi além, com prisões preventivas, intimações para interrogatórios na polícia, ameaças e advertências.

Na segunda-feira (15), dia dos atos, os principais líderes da marcha acordaram com suas casas sob cerco policial, proibidos de sair às ruas. Nas áreas centrais de Havana, a presença maciça de policiais e de cidadãos chamados a defender a revolução dissuadiu qualquer tentativa de protesto.

Embora bem-sucedida, a estratégia de asfixia termina por revelar a profunda incapacidade do regime de lidar com um descontentamento que só tende a crescer. O aparato repressor funcionou desta vez, mas o gênio da contestação popular parece definitivamente ter saído da garrafa em Cuba.

O pobre é só pretexto

O Estado de S. Paulo

Este é o governo Bolsonaro: prefere não honrar as dívidas reconhecidas pela Justiça para conceder aumento, em ano eleitoral, a servidor público.

Depois de sua aprovação em dois turnos pela Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23/21, que limita o pagamento dos precatórios e altera as regras do teto de gastos, foi encaminhada ao Senado. A expectativa do governo é de que seja analisada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na semana que vem. Se a proposta original já era um escândalo – sem fazer o dever de casa, o Executivo federal deseja institucionalizar o calote –, a cada dia acrescem-se novos contornos de irresponsabilidade e de oportunismo eleitoral.

De cara, a PEC dos Precatórios é antirrepublicana. O governo Bolsonaro deseja uma autorização para não cumprir obrigações reconhecidas pela Justiça. Durante o fim de semana, o presidente Jair Bolsonaro tratou uma vez mais o tema com inexatidão e irresponsabilidade. “O que é a PEC dos Precatórios? São dívidas que remontam 30, 40 anos, e que de repente o STF falou que nós temos que pagar de uma vez só”, disse.

Não foi de repente, tampouco foi o Supremo quem decidiu que o governo tem de “pagar de uma só vez”. Todos – pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público – devem cumprir as obrigações reconhecidas pela Justiça. A manobra agora tentada pelo governo Bolsonaro (mudar a Constituição para não ter de pagar o que deve) afronta a segurança jurídica e prejudica o ambiente de negócios. Quer mudar as regras do jogo depois de o jogo já ter terminado.

A PEC 23/21 é uma evidente irresponsabilidade, a merecer imediata rejeição. Para se tornar menos indigesta, o governo federal atribuiu-lhe suposta finalidade social. Segundo o Palácio do Planalto, o calote dos precatórios, combinado com o abandono da regra fiscal relativa ao teto de gastos, seria medida necessária para o pagamento do programa de transferência de renda para a população carente.

A pretensa finalidade social da PEC dos Precatórios foi desmentida várias vezes por especialistas em contas públicas, que apresentaram alternativas para a continuidade do programa social, sem precisar abandonar o teto de gastos. No entanto, o governo federal não se interessou por esses outros caminhos, uma vez que não dariam a Jair Bolsonaro precisamente o que ele mais almeja.

Com a PEC dos Precatórios, o presidente Bolsonaro não quer dinheiro para pagar o Bolsa Família (ou o Auxílio Brasil). Se fosse para isso apenas, não precisaria alterar as regras constitucionais. O objetivo do governo federal é ter autorização para realizar no ano que vem – ano de eleições – outros gastos, eleitoralmente interessantes. No mês passado, veio à tona a articulação, por parte de alguns deputados, para que a aprovação da PEC 23/21 permitisse aumentar o Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões para R$ 5 bilhões, além de incluir emendas de relator no valor de R$ 16 bilhões.

Agora, a execução dessa modalidade de emenda foi suspensa por decisão do Supremo. Mas a questão de fundo permanece. Com o discurso de que é preciso ter dinheiro para programa social, tenta-se ampliar as verbas para outras finalidades. Algumas delas são tão escusas, tão pouco transparentes, que sua execução foi barrada pelo Judiciário.

E o descaramento só aumenta. Durante a viagem a Dubai, o presidente Bolsonaro admitiu que o espaço fiscal aberto pela PEC dos Precatórios é muito maior do que o necessário para pagar o Auxílio Brasil e – vejam só – o governo pensa até em conceder aumento ao funcionalismo público. “Dá para atender a população mais carente, dá para atender a questão orçamentária e pensamos até, dado o espaço que está sobrando, em atender até em parte os servidores”, disse.

Este é o governo Bolsonaro: prefere não honrar as dívidas reconhecidas pela Justiça para conceder aumento, em ano eleitoral, a servidor público. E a manobra é realizada sob suposta motivação social. Jair Bolsonaro consegue ser a cabal farsa de suas promessas. Na campanha, vende antipetismo; no governo, entrega a essência do lulopetismo: vale-se dos pobres para seus interesses eleitorais, mesmo que isso destrua o País.

No País de verdade, sinais de recessão

O Estado de S. Paulo

O ministro Paulo Guedes contou em Dubai uma história de crescimento e de bem-estar muito diferente da realidade brasileira

Muito diferente do mundo mágico do ministro da Economia, Paulo Guedes, o Brasil continua emperrado, com baixo crescimento, alta inflação e sinais de mais uma crise recessiva. O ministro repetiu em Dubai a história de um país muito próspero, com forte criação de empregos e crescimento superior à média mundial. Foi um discurso tão crível quanto o de seu chefe, Jair Bolsonaro, sobre a Amazônia preservada e imune a incêndios. No dia a dia do brasileiro comum, o consumo vai mal, a indústria derrapa e os serviços encolhem, como confirmam os dados oficiais e aponta o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-BR). Esse indicador serve ao mercado como prévia mensal do Produto Interno Bruto (PIB), divulgado a cada três meses pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os negócios diminuíram 0,27% em setembro, segundo o indicador do BC, prosseguindo na queda já ocorrida em agosto, num movimento aparentemente ignorado pelo ministro da Economia. Entre julho e setembro a atividade ficou em média 0,14% abaixo do patamar dos três meses anteriores. No segundo trimestre o índice já havia caído em relação ao primeiro. Produção em queda em dois trimestres consecutivos caracteriza recessão.

A próxima atualização do PIB deve ser divulgada em 2 de dezembro. Se os números acompanharem o recuo do IBC-BR, um novo episódio de recessão estará confirmado. O ministro Guedes ainda terá algum tempo para criar sua explicação, talvez para negar os fatos e, em qualquer caso, para inocentar a si mesmo e, é claro, ao presidente da República.

Com ou sem recessão confirmada, os números continuarão mostrando um desempenho econômico muito ruim na maior parte do ano. Pelos dados oficiais, o PIB do primeiro trimestre foi 1,2% maior que o dos três meses finais de 2020. De abril a junho o resultado foi 0,1% menor que o do trimestre imediatamente anterior, de acordo com as contas nacionais já publicadas pelo IBGE. Mas o avanço no período de janeiro a março, embora vigoroso, foi muito desigual e socialmente muito mal distribuído. Sem auxílio emergencial, cerca de 20 milhões afundaram na miséria, nesse início de ano, e a fome só foi atenuada com o empenho de particulares, de organizações não governamentais e de movimentos ligados a religiões.

Desocupação e subocupação permaneceram elevadas em todo o primeiro semestre. Em Dubai, o ministro falou sobre criação de empregos durante a crise da pandemia. Mas o Brasil encerrou 2020 com desemprego bem maior que o de antes da covid-19. No trimestre móvel encerrado em fevereiro do ano passado os desocupados eram 11,6% da força de trabalho. Um ano depois eram 14,4% da população economicamente ativa. No trimestre móvel até agosto deste ano o desemprego ainda estava em 13,2%. A média está pouco abaixo de 6% nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O Brasil também aparece mal nas comparações sobre crescimento, com os números desmentindo, também nesse caso, o ministro Paulo Guedes. Pela última estimativa do mercado, registrada na pesquisa Focus, o PIB brasileiro deve crescer 4,88% neste ano e 0,93% no próximo. As últimas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontam expansão de 5,2% para o Brasil, em 2021, e de 5,9% para o mundo e 6,3% para a América Latina e o Caribe. Ainda segundo o FMI, o mundo deve crescer 4,9% em 2022 e o Brasil, 1,5%. No mercado, há quem preveja a economia brasileira em recessão no próximo ano.

Os números são maiores quando o confronto envolve períodos anuais. De janeiro a setembro, a atividade no Brasil superou por 5,88% a de igual período do ano passado, segundo o IBC-BR. Em 12 meses o crescimento foi de 4,22%. Mas a base é muito baixa. Além disso, a economia brasileira pouco avançou depois da recessão de 2015-2016 e ainda perdeu vigor já em 2019. O desempenho esperado para 2022, próximo de 2%, de acordo com o Ministério da Economia, será, na melhor hipótese, um retorno à submediocridade, mas isso parece orgulhar o ministro Guedes.

Educação estagnada pelas interferências políticas

Valor Econômico

O trabalho de demolição do governo Bolsonaro na educação é amplo e irrestrito

No domingo será realizada mais uma prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em todo o país. Não bastasse a expectativa dos cerca de 3,4 milhões de inscritos com o desempenho no exame após quase dois anos de pandemia, boa parte deles com escolas fechadas e ensino remoto precário, desta vez há também a preocupação com o impacto do desmonte que vem sofrendo o órgão responsável pela aplicação das provas dentro do Ministério da Educação, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Nada menos que 37 funcionários concursados do Inep pediram afastamento dos cargos de coordenação na semana passada, argumentando assédio moral e ingerência do presidente do órgão, Danilo Dupas Ribeiro, o quarto nomeado pelo governo Bolsonaro. Segundo os servidores, Dupas Ribeiro teria interferido na elaboração das provas para retirar questões de cunho sociopolítico e socioeconômico que incomodassem o governo, e estaria tentando se eximir legalmente de eventuais problemas na aplicação do exame.

O presidente Jair Bolsonaro ratificou as suspeitas ao declarar em Dubai, na segunda-feira, que as questões do Enem “começam a ter a cara do governo”. Seja com que cara for, o governo sequer consegue organizar o exame. A aplicação do Enem de 2020, em plena pandemia, foi um desastre. Dos quase 6 milhões de inscritos, cerca da metade faltou. Ainda assim muitos estudantes foram impedidos de fazer as provas porque as salas a que foram designados estavam lotadas e não comportavam mais pessoas diante da exigência de distanciamento social. Cerca de 200 mil pretendentes questionaram a correção das provas, embora o Inep reconhecesse inconsistência em 6 mil delas.

Fundado na década de 1930 para realizar estudos pedagógicos, o Inep se tornou importante instrumento do ministério com a realização de pesquisas e aplicação de provas importantes para a avaliação do sistema educacional e ponto de sustentação para o estabelecimento das políticas públicas na área. Embora seja mais conhecido pelo grande vestibular nacional em que se tornou o Enem, a nova crise no Inep põe em risco diversos outros exames e levantamentos.

Um deles é o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), aplicado domingo passado. Outro é o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), cujas provas começaram a ser distribuídas na semana passada para estudantes do 5º e do 9º anos do ensino fundamental e 3º do médio. No entanto, alguns Estados, como São Paulo e Espírito Santo, não receberam as provas; e, em outros, algumas cidades também não, como João Pessoa (O Estado de S. Paulo, 12/11). Essas falhas de logística devem atrasar os resultados. O Saeb é importante para a formulação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) que afere a qualidade do ensino e quais pontos devem ser revistos e reforçados.

Deve atrasar também a elaboração do censo da educação de 2022, que deveria ser adaptado a alterações feitas no Fundeb, aprovadas em 2020. Se nada for feito, serão usados os referenciais antigos para determinar desde a distribuição da merenda, livros didáticos, pagamento de professores e a qualidade do ensino.

Todas essas atividades, que já são importantes, ganharam maior relevância diante da necessidade de se dimensionar o impacto da pandemia na educação e elaborar políticas para recuperar o tempo perdido. O Brasil foi um dos países que ficou mais tempo com as escolas fechadas, com um ensino remoto precário. Levantamento feito em meados do primeiro semestre pelo Insper e Unibanco constatou que, no ensino remoto, os alunos aprenderam 17% do conteúdo de matemática e 38% do de língua portuguesa na comparação com as aulas presenciais. Naquele momento, só 25% dos estudantes estavam conseguindo estudar para o Enem na comparação com 33% em 2020.

Já se sabe que a evasão escolar foi elevada e o número de jovens que pensou em desistir de estudar passou de 28% em 2020 para 43% neste ano e 6% deixaram efetivamente os estudos por dificuldades financeiras ou inadequação ao ensino remoto. O quadro é bem pior entre a população de baixa renda.

O trabalho de demolição do governo Bolsonaro na educação é amplo e irrestrito. Escolheu sempre ministros amestrados, incompetentes e reacionários. O atual, Milton Ribeiro, como os antecessores, nada tem a apresentar, fora o desmonte do que funcionava antes e o caos que deixa no lugar.

Intervenção no conteúdo do Enem precisa ter fim

O Globo

Em razão da intimidação, servidores do Inep tiveram de elaborar a prova duas vezes

São gravíssimas as denúncias de ex-servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sobre a pressão ideológica para tirar do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) questões cujos temas poderiam desagradar ao presidente Jair Bolsonaro. Ele já criticara o conteúdo da prova e fizera menção de censurá-la. Na segunda-feira, disse em Dubai que as questões do Enem começam a “ter a cara do governo”. Um assombro. As revelações acrescentam mais um capítulo à grave crise em que mergulhou o Inep. Nos últimos dias, 37 servidores pediram exoneração de cargos estratégicos por discordar da atual gestão.

Em razão da intimidação, servidores do Inep tiveram de elaborar a prova duas vezes. Um ex-funcionário relatou ao “Fantástico” que mais de 20 questões tiveram de ser excluídas da primeira versão por motivos ideológicos. Temas que abordam o contexto político ou econômico são os mais sensíveis para as patrulhas bolsonaristas. “Esse presidente Danilo Dupas está lá porque o ministro da Educação decidiu que seria a pessoa disposta a fazer tudo o que eles queriam: entrar na prova e retirar o que eles acham que o presidente não iria gostar”, disse um ex-servidor.

O conteúdo do Enem sempre foi uma obsessão de Bolsonaro, antes mesmo de assumir. Em novembro de 2018, ele criticou uma questão do Enem que abordava expressões usadas por gays e transgêneros. Prometeu interferir: “Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes”. Embora não tenha cumprido a promessa de ver o exame com antecedência, a intromissão continuou. Em janeiro deste ano, se irritou com uma questão que comparava os salários de Neymar e Marta, discussão que veio à tona na Copa do Mundo de futebol feminino em 2019. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, também já deixou clara a intenção de patrulhar a prova.

Outra obsessão dos bolsonaristas que ganha forma é o ensino doméstico, prática que querem importar dos Estados Unidos e costumam chamar pelo nome em inglês, homeschooling. Após meses de negociação na Câmara, o projeto de lei que a regulamenta está para ser votado. As limitações negociadas não a tornam melhor. Exigir que os pais tenham curso superior, que as crianças estejam matriculadas em escolas e que os conteúdos estejam alinhados com a Base Nacional Comum Curricular não resolve o principal problema: o afastamento do convívio social proporcionado pela escola traz prejuízos graves.

Os defensores da ideia deveriam atentar para os efeitos nefastos da pandemia, que manteve as crianças longe da escola. Para não falar no óbvio: a maior deficiência da educação no Brasil nada tem a ver com a pretensa pregação esquerdista que amedronta os bolsonaristas — mas muito com a qualidade sofrível dos professores. Em casa, onde pais não têm nenhuma formação em pedagogia, tende a ser ainda pior.

O governo comete repetidos erros na educação. Depois de um ano e meio de escolas fechadas, os desafios são gigantescos, entre eles trazer de volta os alunos que largaram os estudos. Mas o governo Bolsonaro não parece nem um pouco preocupado com isso. A prioridade é agradar à militância nos cercadinhos do Planalto. Não importa a que preço para o país. A gestão desastrosa na educação não compromete só o presente, mas sobretudo o futuro. Os danos poderão ser irreparáveis.

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