Valor Econômico
Brasil flerta com ditaduras porque não
cuida de seu povo
Em 1953, apenas 25, de cada cem crianças
brasileiras, estavam na escola. Nossos pais contavam que naquela época a escola
pública era “muito boa”. Não se conhece ninguém que tenha desmentido essa
afirmação porque seria chato confrontar os próprios pais com um argumento
irretorquível: como pode ser qualificado de bom um sistema de ensino que atende
a demanda de apenas 25% dos estudantes do ensino básico?
Brasileiros, temos o péssimo defeito de tomar como certo o que é profundamente errado. E, assim, vamos nos iludindo a serviço de grupos de interesse específico numa sociedade onde o país é rico, mas a riqueza é concentrada nas mãos de pouquíssimos. Em pleno século XXI, cidadãos pertencentes à elite cultural do país defendem como verdadeiro, por exemplo, o pior dos mitos disseminados neste canto do planeta: o de que somos uma democracia racial.
Em 1953, quando somente um quarto das
crianças tinha acesso à educação, a classe média foi às ruas, com entusiasmo
inédito, clamar pela nacionalização das reservas de petróleo que, àquela
altura, ainda não tínhamos descoberto. A campanha “o petróleo é nosso” foi a
maior mobilização popular da história do Brasil até meados de 2013, quando, de
forma desorganizada, difusa e sem vínculo com partidos políticos ou mesmo com
entidades da sociedade civil, milhões foram às ruas reclamar da baixa qualidade
dos serviços públicos, da falta de segurança pública e, claro, do governo Dilma
Rousseff.
Sessenta anos entre os dois maiores
movimentos populares não foi, como se vê, tempo suficiente para o Estado
brasileiro oferecer educação de qualidade aos brasileiros. Será o povo que
habita este imenso território injusto com o governo, afinal, em 2013
praticamente 100% das crianças estavam matriculadas nas escolas? Este foi, sem
dúvida, um enorme avanço, viabilizado pela Constituição de 1988, que, além de
tornar a universalização do ensino fundamental 1 (antigo primário) e 2
(ex-ginasial) um dever dos entes federativos, criou as condições para que a
obrigação fosse consumada.
Mas, se tem uma característica que não deve
ser imputada aos brasileiros, principalmente à maioria pobre e miserável, é a
de que eles são injustos com os governantes. O Estado brasileiro cobra de seus
cidadãos uma carga de impostos e tributos de país rico - o equivalente a quase
35% do Produto Interno Bruto (PIB) - e presta serviços, em geral, de nação
pobre. Em 1953, o analfabetismo, perversidade que humilha e sabota o futuro de
suas vítimas, era tão avassalador que difícil mesmo seria encontrar quem
soubesse ler.
Os filhos e netos das sucessivas gerações
de maioria analfabeta concluíram, pelo menos, o antigo primeiro grau - no
ensino médio (ex-segundo grau), a tragédia continua porque, na média do país,
apenas metade dos adolescentes está na escola. Aprenderam que o que permitiu
esse progresso foi o retorno à democracia, onde todo cidadão tem, em tese, o
direito de subir no banco da praça e esculhambar o governo sem ser importunado
pela polícia - sabemos que, nesta jovem democracia, não é bem assim, mas
valhamo-nos dessa simbologia.
A história mostra que o Estado democrático
de direito é menos instável - as experiências de maior longevidade da
Inglaterra e dos Estados Unidos são prova disso - quando adepto da economia de
mercado, cujos princípios básicos são os mesmos do regime democrático - livre
arbítrio, liberdade de opinião (ou de empreender), competição, tudo isso
regulado por um Estado forte, mas, jamais, usurpador do direito sagrado do
cidadão de escolher seus representantes e de se manifestar, nem de ser o
provedor final dos bens demandados pela população; como a democracia numa
economia capitalista pode se comparada a uma corrida, nesse modelo, cabe ao
Estado usar a maior parte de seus recursos para assegurar que os cidadãos
tenham oportunidades iguais, de forma que a distância entre os habitantes seja
a menor possível, sabendo-se que sempre haverá algum grau de desigualdade e um
contingente de despossuídos, aos quais a sociedade, por meio do setor público,
proverá sua subsistência.
Os brasileiros, como costuma pontuar de
forma brilhante o economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto
Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV-Rio, demandam mais democracia desde 1954.
No fundo, diz ele, desde então, a história se resume à demanda do povo por mais
democracia e à resistência de grupos que se opõem a concedê-la porque se
beneficiam da concentração de riqueza. Como não é possível conter
“democraticamente” as reivindicações justas de quem não tem perspectiva de futuro
porque o Estado nega-lhe o básico, de tempos em tempos, a democracia se
fragiliza e caímos em regimes de exceção.
Em 2013, os cidadãos que concluíram o
ensino fundamental perderam a paciência com o establishment. A razão é uma só:
ao viver numa economia cada vez mais movida por tecnologias que se tornam
obsoletas em curto espaço de tempo, exigindo dos trabalhadores formação que os
brasileiros não têm, a vida, principalmente de setores da classe média com
menor grau de instrução, piorou sobremaneira.
Esses cidadãos foram às ruas pedir
dinheiro, mas, sim, educação de qualidade porque, sem isso, na “corrida
democrática”, a distância entre eles e os filhos da classe média alta e dos
ricos é enorme. Eles olham para o horizonte e nada veem. Sendo assim, começam a
acreditar em políticos messiânicos e autoritários, líderes religiosos
inescrupulosos, que lhe contam uma história que, em meio ao seu desespero,
soa-lhes sensata. Daí, a acreditarem que a democracia, os congressistas,
governadores, prefeitos e o Poder Judiciário são os verdadeiros responsáveis
por sua danação é um pulo.
O Brasil, aparentemente, não vive o risco
de, novamente, retroceder para um regime não democrático. De toda forma, falar
desse tema pareceria exagerado dez anos atrás. Hoje, é tema obrigatório. Mas,
se prevalecer a democracia, é crucial que os próximos governos não adiem mais o
enfrentamento das enormes desigualdades que separam os brasileiros, a começar
pelo combate diuturno e inadiável do racismo, nossa principal característica
nacional.
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