Folha de S. Paulo
Na guerra das tarifas, Trump encena western
moral em que a punição vale mais que a economia
Não sou capaz de opinar sobre a racionalidade econômica por trás da guerra tarifária em que Trump empenhou seu governo nos últimos dias. Deixo a dor de cabeça para quem entende de comércio internacional. Mas gostaria de examinar essa confusão do ponto de vista da política ou, mais precisamente, da comunicação política. Mesmo porque tenho a impressão de que Trump entende tanto quanto eu sobre comércio e tarifas —e é na arena das narrativas e dos imaginários que está, de fato, jogando o seu jogo.
E se tudo parece desconcertante sob a ótica
econômica, talvez no campo da comunicação política as coisas se esclareçam.
Trump é um populista de direita, é essa a sua persona pública —e ele ainda não
saiu do personagem. O contrato que o populista estabelece com seus seguidores é
simples: ele é o campeão do povo contra a exploração e a traição das elites.
O povo, neste caso, é a nação em seus
estratos mais profundos: o americano médio, trabalhador e empobrecido por ser
vítima, ao mesmo tempo, de um Estado que mete a mão no seu bolso e do
globalismo que se aproveita do país. O populismo opera com uma equação sem
variações: há um povo bom, uma elite exploradora e um líder vinculado
organicamente ao povo, que busca o poder para reparar essa injustiça.
Por isso, Trump estrutura sua retórica sobre
três pilares centrais: o vitimismo (nacionalista), a exigência de compensações
e, agora com nitidez, a punição exemplar dos culpados. O primeiro inverte os
papéis: os EUA, vistos como potência imperial, aparecem como nação humilhada
por seus aliados e adversários. O segundo transforma a reparação em questão de
justiça histórica. E o terceiro —o mais brutal e eficaz— promete fazer os
exploradores sofrerem.
Esse tripé retórico esteve escancarado no
discurso do chamado Liberation Day, na semana passada. Trump declarou que
"por décadas, nosso país foi saqueado, pilhado, estuprado e
explorado" e que "trabalhadores americanos assistiram, impotentes, à
destruição do sonho americano enquanto líderes estrangeiros roubavam seus
empregos e fábricas". O mais absoluto vitimismo: a nação como vítima
passiva da pilhagem mundial, enquanto uma elite nacional cúmplice a tudo
assistia.
A resposta vem sob a forma de uma vingança
organizada e institucional. "Este é o Dia da Libertação", declarou
Trump, com pompa e vaidade. "É a nossa declaração de independência
econômica." E, com isso, anunciou tarifas punitivas sobre automóveis
estrangeiros e novas exigências para países que desejem acesso ao mercado
americano: "Se quiser tarifa zero, construa aqui".
Aqui entra a lógica da compensação —mas com
um detalhe central: essas tarifas não são apenas uma medida econômica, são
castigo. Um mecanismo de correção simbólica que faz os supostos culpados —os
países que "nos exploraram"— sentirem na pele o peso da justiça
retributiva.
As tarifas, nesse registro, pouco têm a ver
com racionalidade econômica. Podem ser um absurdo técnico —e os analistas de
mercado quase unânimes as tratam como tal—, mas fazem sentido no campo da
retórica política. Para Trump, elas são o chicote que desce no lombo dos que
"por muito tempo se aproveitaram de nós", um prazer punitivo que o
povo americano merece ver e saborear. Afinal, o que importa é o espetáculo da
restituição, da revanche e da punição dos que "nos humilharam".
"Eles vão pagar um preço alto", prometeu. "E, pela primeira vez
em muito tempo, o povo americano vai vencer."
Essa retórica —que ora se vitimiza, ora
agride— alterna dois modos populistas clássicos. No modo vitimista, Trump
apresenta o povo americano como explorado por uma elite global e traído por
suas próprias lideranças políticas e culturais. No modo valentão, encarna o
macho alfa que chegou para limpar a cidade: o novo xerife do Velho Oeste do
comércio internacional, disposto a restaurar a decência nem que seja à base de
balas e murros.
Trump talvez não entenda nada de comércio
internacional. Mas entende tudo de ressentimento, espetáculo e gozo punitivo. E
é nisso que aposta: na satisfação que a vingança política oferece aos que se
sentem derrotados, empobrecidos e esquecidos por um sistema que, ao longo das
décadas, os transformou em número, estatística e dano colateral.
No fundo, o que ele oferece não é uma
política comercial. É o roteiro de um western moral: o povo foi roubado, o
herói chegou e alguém vai pagar com sangue por cada lágrima derramada. Se vai
dar certo, não sei, mas o enredo é esse.
Falta só combinar com a realidade.
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