Tudo é intrigante no documento "Uma ponte para o futuro" - suas origens, meios e fins. Apresentado pelo vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB-SP), sob a chancela intelectual da Fundação Ulysses Guimarães, think tank do PMDB, ele parece uma enquete com fatia seleta do empresariado, economistas da oposição e políticos tucanos escolhidos a dedo. Não se conhecem os autores.
Batizado de "proposta Temer", é programa mais ortodoxo que surgiu nos últimos anos, patrocinado por forças políticas relevantes no país. À diferença da "Agenda Brasil", também lançada às pressas, não tem digitais de interesses paroquiais da federação pemedebista. Comparado ao programa de governo de Aécio Neves, do PSDB, lançado nas eleições, ele vai mais longe e mais fundo nas poucas e vitais questões que aborda, como a do Orçamento - fim de todas as vinculações, constitucionais, por exemplo -, das regras para o uso eficiente do dinheiro públicos e de sua supervisão, das reformas estruturais urgentes, como a da Previdência, enfeixadas pela intenção central de eliminar todo tipo de indexação ainda vigente na economia.
É um programa liberal acabado, com muitos pontos vitais e corretos que habitam o ideário de vários setores do empresariado e de economistas ortodoxos. A clareza e radicalidade das propostas, porém, suscitam a questão imediata de saber que partidos poderiam encampá-las e apoiá-las no Congresso. A resposta: quase nenhum. Nem mesmo o PMDB, que ainda mantém em seu programa frases como: "A partir da década de 90, os "neoliberais", radicalizando a proposta liberal, promoveram o desmonte do Estado, a desorganização da atividade produtiva e a profunda deterioração das condições de vida do nosso povo" (PMDB: Democracia com Desenvolvimento").
O PMDB, o fiel da balança da governabilidade no Congresso, é arraigadamente fisiológico na defesa de interesses grupais, vários pouco republicanos, e nada mais contrário à legenda que contas públicas em ordem e austeridade nos gastos. E até mesmo o programa tímido de ajuste como o submetido pelo governo Dilma ao Congresso enfrenta dificuldades insuperáveis, pagando um pedágio alto aos lobbies parlamentares pelo que consegue aprovar.
Se somadas, as forças de oposição na última eleição foram embaladas por ventos liberais, uma tendência que deve se firmar no futuro. Mas há chances de elas prevalecerem no presente? Esse é outro mistério dessa "ponte" para o futuro, parcialmente esclarecido na explicação de Michel Temer sobre a utilidade do programa. "É para já e para o futuro", disse.
Para já, entenda-se em caso de impeachment, eventualidade na qual o vice apresenta-se previamente como interlocutor com um programa confiável para vastas camadas do eleitorado e forças políticas de centro e direita. Para o futuro, pois se não houver impeachment, o PMDB caminha para abandonar o PT nas próximas eleições, com um programa que, se não é de todo viável, serve de instrumento de barganha, pois possui boas respostas para a crise econômica e o endosso de boa parte do grande empresariado.
O programa-ponte se proclama óbvio candidato a plataforma de um governo de união nacional pós-impeachment. Está em jogo "nada menos que o futuro da nação", que impõe "uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial" para executá-la. Com Temer na Presidência. Com um programa sério, Temer busca a credibilidade de um ideário que não tem como presidente do PMDB, que é francamente contrário ao modo de operação vital de seu partido e que possivelmente não é sequer o seu.
Situações de crise abrem espaço para líderes se alçarem acima dos partidos, mas em geral eles surgem amparados por milhões de votos. O atual vice-presidente tem só um pouco mais de popularidade que a presidente Dilma - como a dela, é muito baixa. É impossível que reúna até mesmo apoio importante no PMDB.
É curioso, e talvez inédito, que um dos marcos iniciais da próxima disputa eleitoral, seja um programa à frente de um candidato, e não o contrário. Pode ser evidência de que o programa não é para valer. Pode ser mais um lance tático de uma conjuntura muito instável, logo esquecido. Ou pode ser uma incipiente tentativa (outras virão) de soldar a enorme frente antipetista - mesmo que nela se possa contar nos dedos os liberais convictos.
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