O Globo
Os réus mentiram e omitiram em seus depoimentos, mas confirmaram o roteiro golpista articulado ao fim do governo Bolsonaro
Réus podem mentir. E foi o que fizeram os réus do núcleo crucial da ação penal sobre a tentativa de golpe no Brasil. Uns mais que outros. Mas não apresentaram elementos para destruir o conjunto probatório que há contra eles, até porque confirmavam a acusação nos muitos atos falhos. “Não tinha clima”, admitiu Jair Bolsonaro. “Não havia possibilidade”, afirmou o general Augusto Heleno. Não é que o golpe não foi tentado. Ele foi. Só não foi concluído. Os réus mentiram, omitiram, minimizaram atos, alteraram a natureza das reuniões, mas confirmaram todo o roteiro do que foi tentado ao fim do governo Bolsonaro, antes de decidirem “entubar” o resultado eleitoral.
Por uma “fatalidade”, a minuta de um decreto
de golpe de Estado foi parar junto às fotos da família do ex-ministro da
Justiça Anderson
Torres. Ele usou essa palavra para explicar o motivo de o documento estar
ali. “Tinha muitos erros de português”, reclamou Torres. Ele só pôs reparos nos
atentados ao vernáculo. Os maiores ataques do texto eram à democracia. Por que
o então presidente Bolsonaro chamou os comandantes militares para uma reunião,
por não ter se conformado com o resultado eleitoral? “É a minha formação
militar”, disse Bolsonaro. Por que o general Braga Netto falou com uma
apoiadora que “alguma coisa” aconteceria? “Eu me referia ao recurso do PL ao
TSE”.
Os réus pediram desculpas. O ex-ministro da
Defesa Paulo
Sérgio Nogueira havia chamado o TSE de “inimigo”. Ele se penitenciou
pelo que disse. Bolsonaro acusou três ministros do Supremo, numa reunião
ministerial, de receberem milhões de dólares para fraudarem o resultado
eleitoral. “Que indícios o senhor tem?”, perguntou Alexandre
de Moraes. “Não tenho indício nenhum, me desculpe. Era uma reunião para não
ser gravada. Eu não tive intenção de acusar de desvio de conduta dos senhores”,
disse Bolsonaro. Só nessa resposta o ex-presidente já admitiu crime de calúnia
e difamação.
Ao longo do interrogatório, ele repetiu essa
bizarra explicação. O problema não foi uma reunião ministerial, de julho de
2022, em que todos estavam, por ação ou omissão, em conluio contra a
democracia. O único problema foi a reunião ter sido gravada. Quem gravou? Ora,
ele mesmo, Bolsonaro mandava gravar reuniões para depois fazer cortes para a
internet, como admitiu ter feito em outros momentos.
O general Braga Netto escreveu em mensagens
de WhatsApp que deveriam ser disparados ataques nas redes sociais contra seus
colegas de farda. Por que escreveu isso? “Não me lembro”; “São mensagens fora
do contexto”; “Não escrevi”. Estava lá escrito no seu próprio aplicativo de
mensagens, mas o general nega.
Bolsonaro repetiu várias vezes que “nunca se
falou em golpe”. A questão é que é preciso entender o que é golpe para ele.
Segundo ele, “a questão de 64 que a esquerda chama de golpe teve o apoio do
Congresso, da imprensa, da Igreja”. Ele preparava um golpe, só não o chamava
pelo nome próprio.
Em momento do interrogatório que se fosse
filme pareceria exagero, o ministro Moraes perguntou a Walter
Braga Netto. “O senhor já foi preso, alguma vez”? “Eu estou preso, senhor
presidente”. “Eu sei que o senhor está preso, eu que decretei”, responde
Moraes. Esse diálogo meio non sense serve para iluminar uma questão importante
do processo. Os advogados de Braga Netto pediram o relaxamento da prisão, dado
que já se encerrou a fase de instrução penal. O ministro Alexandre deveria
atender aos advogados. Seis
meses de prisão preventiva e encerrado o interrogatório dos réus não faz mais
sentido manter a prisão. Há fortes provas de que ele esteve presente
no planejamento do golpe e é acusado de ter estado também na parte operacional,
mas o motivo da preventiva não existe mais.
As cenas que o Brasil viu essa semana foram
inéditas. Já houve militar preso como o marechal Hermes da Fonseca numa prisão
relâmpago. O Marechal Rondon foi preso durante a Revolução de 1930. Mas a cena
de três generais quatro estrelas, um almirante e um ex-presidente respondendo
como réus por tentativa de golpe de Estado é inédita. O Brasil atravessa
terreno desconhecido, portanto. Ao fim da ação penal 2668 quando eles forem
para a prisão, o que parece ser a tendência mais provável, o país terá a chance
de atravessar a fronteira para longe da sina de país sempre assombrado pelas
armas dos militares.
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