O Estado de S. Paulo
No pântano cultural em que nos atolamos, uma
imagem fingida ainda valerá mais do que mil palavras sinceras. Por muito tempo
Quando você vê no horário nobre da TV um
vídeo mostrando que ninguém mais pode confiar num vídeo, pode ter certeza de
que a crise de credibilidade da imagem bateu no limite do insuportável, até
mesmo para os profissionais de televisão. E é isso, rigorosamente isso, o que
estamos vendo agora.
No domingo passado, o Fantástico pôs no ar este alerta: duvide do vídeo. Numa reportagem impecável (embora leve, informal e quase sorridente), a telerrevista da Globo mostrou que os recursos de inteligência artificial já conseguem fabricar cenas perfeitas com personagens que nunca existiram – ou, o que é pior, cenas mais do que convincentes com personagens que existem, mas nunca fizeram nada daquilo que se vê na tela. Sim, a crise de credibilidade é real e chega até nós como um terremoto. É bom pensar duas vezes, ou mais de duas, antes de acreditar nos filminhos ou filmões que se insinuam para os seus olhos. Você talvez escape das armadilhas. A grande maioria das pessoas, porém, continuará caindo em cada uma delas.
Antes de qualquer outra consideração,
reconheça-se o mérito do Fantástico. O programa, que é inteiramente feito de
pixels, teve a coragem de expor a falseabilidade dos pixels. A ousadia se
justifica. Apontar as fraudes digitais, que se banalizam aceleradamente, é o
melhor caminho, e talvez seja o único, para resguardar a autenticidade que só a
imprensa profissional é capaz de oferecer.
A confiabilidade da informação não poderá
mais se lastrear no esmero plástico dos enquadramentos, mas na palavra de honra
de quem gravou, de quem editou e de quem pôs no ar. O vídeo pode ser rudimentar
– como aqueles que, trepidantes, esmiúçam a destruição em Gaza – e ser honesto,
ou pode ter ares de refinamento – como alguns dos que, durante a pandemia,
fizeram publicidade de um certo vermífugo – e não passar de mentira criminosa.
Os olhos não poderão mais separar o falso do verdadeiro. O que importa não é
mais a dosagem da luz ou o movimento estável da câmera do telejornal, mas o
compromisso de quem assina embaixo. O padrão de qualidade não será mais técnico
– terá de ser ético. O Fantástico sabe disso e aposta nisso, mas a massa de
telespectadores ainda vai demorar para entender a gravidade do que está em
curso.
Estamos numa transição que afetará em
definitivo a nossa forma de contemplar e conhecer o mundo. A fotografia e o
vídeo deixarão de ser registros confiáveis dos acontecimentos. Parece um
detalhe desprezível dentro do vasto mundo da comunicação social, mas esse
detalhe terá consequências monstruosas. Um close pode até divertir, encantar,
emocionar, hipnotizar, pode até gerar lucros polpudos, mas não é mais prova de
nada. A função recreativa das câmeras deglutiu a função documental que elas
tinham. Só o que ainda merece alguma confiança, vale repetir, é a palavra (de
honra), e mesmo essa se esfarela nas fantasmagorias fluorescentes dos
passatempos públicos.
Tudo aconteceu muito rápido. Em 1991, no
livro Vida e morte da imagem, Régis Debray escrevia que somos “a primeira
civilização que pode julgar-se autorizada por seus aparelhos a acreditar em
seus olhos”. Ele disse mais: “Uma foto será mais ‘crível’ do que uma figura e
uma fita de vídeo do que um bom discurso”. O tom era de profecia, mas era
também de cética: Debray criticava com acidez a fé nas imagens eletrônicas,
apontando a inconsistência dessa fé profana.
Ele tinha razão. Hoje, a mesma civilização
que achava “crível” sua videografia é chamada a duvidar dos próprios olhos. Mas
ela terá força para duvidar do vídeo? Dificilmente. Será que ela deseja
realmente duvidar do vídeo? Todos os sintomas disponíveis dizem que não. O mais
provável é que a tal civilização ainda sucumba muitas e muitas vezes às
manipulações grosseiras. O mais provável é que caia em armadilhas previsíveis e
seriais, como vem caindo, para deleite dos extremistas, dos populistas, dos
autocratas e dos espertalhões junkies que são donos de big techs. Em vez de
duvidar dos olhos, as sociedades que aí estão parecem preferir ter prazeres –
vis, vãos e vadios – com suas retinas cínicas.
Democracias em risco. Se você pensar um
pouco, perceberá que, quando a função recreativa das câmeras deglutiu a função
documental que elas um dia tiveram, deglutiu junto umas franjas consideráveis
da razão e corroeu a qualidade do debate público. Manipulações cibernéticas
ainda farão muito estrago.
Diante do que está vindo aí, as perversidades
de Stalin, que mandou apagar o semblante de Trotsky da memória fotográfica da
Revolução Russa e assim tapeou multidões de todos os continentes, parecerão uma
travessura infantil. O problema hoje é de outra ordem. O falseamento não é mais
exceção, mas a regra.
Nos nossos dias, já sabemos: um vídeo vale menos que um discurso e uma foto vale menos que uma figura. Mas como despertar a sociedade? Foi bom ver a denúncia no Fantástico, mas foi pouco. No pântano cultural em que nos atolamos, uma imagem fingida ainda valerá mais do que mil palavras sinceras. Por muito tempo.
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