- O Estado de S. Paulo
Navegando no pântano do Rio Pandeiros, no norte de Minas, tive uma intuição sobre o curso das coisas no Brasil. As plantas aquáticas dominavam o caminho, não se via água. Onde estava o leito do rio? Nosso objetivo era alcançar o São Francisco onde o Rio Pandeiros desemboca.
O barco avançava entre os aguapés ao som do ruído do choque das plantas com o metal do casco e percebi que sozinho ficaria perdido na imensidão daquele pântano verde-garrafa. Por isso levamos o barqueiro Pedro, que conhece as pequenas e fugidias trilhas da água. E ele nos levou, depois de quase três horas de viagem, ao encontro do São Francisco.
A verdade é que na volta, pelo mesmo caminho, o motor do barco fundiu. Mas Pedro faz o mesmo percurso quase todo dia. Sabe se mover no pântano.
A sensação de se mover de forma errática naquele território de mil hectares seria insuportável. No entanto, ela se parece com a que vivemos na cena nacional. Os atores aparentam não conhecer as trilhas do pântano. E se perdem no emaranhado das folhas, retrocedem achando que avançam.
Falemos dos projetos de “bondades” que o Congresso aprovou e Dilma vetou. Derrubar os vetos da presidente, sem dúvida, a enfraqueceria. Mas ao custo de perpetuar a mesma ilusão que nos jogou no buraco: fazer o bem sem olhar o momento ou saber como pagar.
O governo, então, parece ter adotado o pântano, como os jacarés. Delira em público sobre impostos, da CPMF à Cide, e termina sua noite nos cassinos, sonhando em legalizar o jogo. Com quem será, com quem será que a gente vai se ferrar?
Todos sabem que não se sai do pântano sem um timoneiro. E a maioria considera o impeachment inevitável. Mesmo o PT já deve estar discutindo internamente se a renúncia ou o impeachment pode servir-lhe melhor na outra vida. Se houver outra vida depois da que se perdeu na delinquência.
Dos atores pantaneiros, o que me parece ter um esboço do caminho é o PMDB. Recusou indicar ministros e marcou para dia Proclamação da República a convenção que pode romper com o governo federal. Daí para se unir com a oposição e despachar Dilma é somente um passo.
Não é um trajeto fácil, porque o barco do PMDB ainda vai enfrentar a tempestade da Lava Jato, mais ameaçadora ainda com o surgimento de novas delações premiadas. E alguns dos seus quadros não resistem a participar de um governo, mesmo depois de morto.
E há as grandes dificuldades do pós-impeachment. As empresas brasileiras perderam R$ 1 trilhão em valor de mercado. O dólar aumenta vertiginosamente, com reflexos na economia, no cotidiano e na produtividade de quem depende de produtos importados.
São instrumentos de trabalho que não se vendem no posto Ipiranga. Falava de tudo isso, segunda-feira, num encontro com amigos em Niterói, no momento em que o motorista que me esperava na porta foi sequestrado e assaltado.
Com os últimos arrastões no Rio e a insegurança que sinto nos meus deslocamentos, deveria ter enfatizado algo que apenas esbocei em alguns artigos. As duas crises que se alimentam mutuamente, a política e a econômica, começam a disparar o gatilho da que realmente vai mudar a qualidade do processo: a crise social.
Dois importantes termômetros são o índice de desemprego e o aumento da violência urbana. Daí o sentido de urgência não só de despachar Dilma, de mas esboçar uma visão de como sair do pântano.
Algumas realidades não desaparecem com a saída de Dilma. O rombo no Orçamento, por exemplo.
Teremos pouco dinheiro para demandas crescentes.
Creio que as trilhas do impeachment são visíveis no momento. Para o depois, nem tanto.
Existe um quase consenso, do qual compartilho, de que é preciso reconquistar a confiança do mercado. Inúmeras vezes defendi essa tese no Parlamento, a de uma sintonia com o mercado. No entanto, sempre ressalvei que precisava trabalhar com outras coordenadas, senão iria soltar a voz na Bolsa de Valores, e não no Congresso Nacional.
O desafio de sintonizar-se com o mercado, articulando as diferentes dimensões da crise, é dos políticos. Talvez esteja dramatizando um pouco, mas em outro contexto. O Congresso deveria estar fervilhando não apenas com o impulso da queda de Dilma, mas no debate das opções que se abrem.
Em linhas mais gerais, ficou claro que só é possível avançar respeitando as leis que regem o capitalismo. Só tem sentido contrariar essas grandes realidades quando se tem outro modelo como estratégia. Exemplo: o “socialismo do século 21” na Venezuela. Na verdade, uma ruína do século 21.
Ao longo destes anos, o governo do PT suscitou um arsenal crítico que é um ponto de referência.
Mudar a política externa, hoje talvez seja fácil, pelo menos no curto período que vai até 2018: bastaria inverter as prioridades do governo petista. Isso não significa voltar as costas para os vizinhos continentais. Mas diante das potencialidades do País, não podemos distanciar-nos da inovação tecnológica.
A tarefa central de um governo minimamente articulado será a de levar o País para 2018, restabelecendo um fio de confiança no processo político brasileiro. Aí, então, será possível renovar a esperança e prosseguir na tarefa gigantesca não só de resolver a crise econômica, mas todos os problemas que incomodavam quando a economia, para muitos, ainda parecia bem em 2013 e milhões de pessoas foram às ruas exigir melhores serviços públicos.
Quando caiu o Muro de Berlim, os camelôs vendiam seus pedaços aos turistas. O material acabou e os camelôs passaram a vender pedaços de muro falsificados. Não sei se vejo bem, mas a ideia me ocorreu quando comecei um livro sobre o meu aprendizado da democracia nos trópicos.
Este momento histórico mostra a implosão, no País, do último pedaço falsificado do Muro de Berlim.
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Fernando Gabeira é jornalista
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