sexta-feira, 6 de julho de 2018

José de Souza Martins: O teatro da pobreza

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Assim como não bastava à mulher de César ser honesta, pois era decisivo, para sua reputação, que parecesse honesta, assim também não basta ao pobre ser pobre para convencer terceiros de que carece das esmolas que pede, quando o faz: é preciso parecer pobre. Nossos pobres têm desenvolvido técnicas de apresentação pessoal para convencer os outros de que são efetivamente pobres. Não só os que pedem esmolas, mas também os que pedem favorecimentos.

Nem sempre foi assim. Antes do fim da escravidão e do advento da sociedade de classes, que é a atual, a sociedade brasileira foi uma sociedade de estamentos. Nela, os pobres não precisavam parecer pobres porque visivelmente pobres desde o berço. Uma pobreza radicalmente diferente da que conhecemos hoje. A diferença não era a do mais nem a do menos, como nos dias atuais. Era a da origem.

Os indícios de condição social de pessoa ínfima eram vários: andar descalço era um deles, pois as pessoas de linhagem não caminhavam sobre os próprios pés. Eram carregadas. No mínimo, tinham que usar sapatos para não tocar o chão. Até os gestos e o modo de falar podiam ser indícios de inferioridade social. Era o caso do sotaque da língua nheengatu, no português carregado de vogais e de palavras da língua tupi no vocabulário cotidiano. Herança da escravidão indígena.

Com o advento das classes sociais, o nascimento já não importa. Importa o que cada um consegue ter. Sociedade em que mesmo os que nada ou pouco têm fingem ter o que não têm. Outros, na falta de conquistas pessoais e de haveres, os carentes de tudo têm que fingir ser o que de fato são, pobres, para que tenham sua pobreza reconhecida e sua carência atendida.

Nos que pedem esmola nas ruas é possível reconhecer pobres de pobreza recente, ainda não acostumados aos requisitos sociais do fingimento para obter o que precisam para sobreviver. Seu constrangimento e sua vergonha ficam evidentes no comportamento de pessoa fora do lugar.

Com a sociedade de classes, desenvolveu-se entre nós o teatro da pobreza. Nos originários das escravidões indígena e negra, a marca racial já era tomada como evidência de pobreza. Mas, muita gente branca já era pobre na escravidão ou tornou-se pobre devido às transformações econômicas e aos descartes sociais decorrentes, ao desemprego, às doenças, ao envelhecimento.

Tornou-se comum ver nas ruas, na porta das igrejas ou na entrada das estações ferroviárias os chamados esmoleiros, implorando em tom choroso "uma esmolinha pelo amor de Deus". "Esmolinha", e não "esmola", para não demonstrar ambição. A caridade, entre nós, sempre foi um rito de confirmação da subalternidade de quem pede. A esmola foi e continua sendo o auxílio bem medido, sempre aquém daquilo que diferencia um pobre que precisa de esmola de um não pobre que dela não carece.

A teatralidade da esmola envolve o risco do desmascaramento. Quem dá esmola também maneja técnicas de distinção do falso e do verdadeiro no desempenho de quem estende a mão e geme um pedido de ajuda. Na nova sociedade, causavam, e causam, escândalo e apareciam nas páginas de jornais os casos de mendigos abonados, que tinham o que era indecoroso ter, acima do mero carecer. Sendo a legitimidade da esmola limitada ao comer, constituía e ainda constitui abuso quando avançava no terreno das ambições do ter.

Ainda há os esmoleiros performáticos que, nas esquinas, fazem ótimo teatro de sua pobreza, de dar inveja a muitos atores profissionais. Geralmente, autores de um roteiro muito compacto, adaptado ao curtíssimo tempo da mudança da luz dos semáforos. Joias da teatralidade da miséria.

A demonstração da pobreza passou a depender não só da apresentação pessoal de sinais das carências, mas de argumentos convincentes que toquem nos pontos sensíveis do sentimento de culpa dos ouvintes. Narrativas menos da fome do que das adversidades pessoais. Significativamente, não as de quem nasceu miserável, mas as de quem se tornou miserável por ter perdido o emprego, por ter sido abandonado pela família ou por ter sofrido um acidente.

O teatro da miséria tem que entrar no imaginário daqueles que a vida agraciou com a "normalidade". O pedinte explora a culpa potencial de quem não foi traído pela vida. Pobre é quem "não tem sorte", um modo de desconstruir a ideologia do êxito pessoal e profissional, atribuído não à competência e ao esforço de cada um, mas ao mero acaso. Já não é o nascimento ou o esforço pessoal que asseguram êxito ou fracasso. É a mera loteria da vida, própria dos valores anticapitalistas da sociedade da incerteza. O capitalismo brasileiro tornou-se um jogo de azar. Não pressupõe a harmonia do lucro com o bem comum. Foi nisso que fracassamos.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "O Coração da Paulicéia Ainda Bate" (Editora Unesp/Imprensa Oficial).

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