Não é a primeira vez nem será a última que ministros do Supremo Tribunal
Federal baterão boca em público, embora nunca seja dignificante para a mais
alta instância do Poder Judiciário que seus membros se digladiem em público.
Mas o importante, sempre que há um desentendimento deste tipo, é saber se ele
foi deflagrado por uma questão de fundo ou se tem origem em questões puramente
pessoais. Nada indica que o ambiente do Supremo esteja conflagrado, e muito
menos por razões de cunho político.
O que ocorreu foi um desabafo fora de hora do ministro Cezar Peluso, que se
antecipou à aposentadoria, que só ocorrerá em setembro, e passou a falar como
um não membro do STF, e uma resposta um tom acima do ministro Joaquim Barbosa,
um ministro propenso a confrontos, especialmente atingido pela referência a
supostos problemas com sua cor de pele.
Diferentemente de um bate-boca anterior, este apresentado ao vivo e em cores
pela TV Senado, entre Barbosa e o então presidente Gilmar Mendes, desta vez não
havia nenhum debate doutrinário, apenas maneiras diversas de encarar a vida.
Tanto que a única crítica aos procedimentos do STF feita por Peluso em sua
entrevista ao Consultor Jurídico, a de que os ministros tendiam a votar de
acordo com a opinião pública, não foi rebatida por Barbosa.
Quando Gilmar Mendes o acusou de fazer "populismo judicial",
argumentando que "esse negócio de classe não cola", Barbosa retrucou
que levava em conta "as consequências" de suas decisões.
Ali estava revelado que também no Supremo há um debate entre os
"consequencialistas", que interpretam a lei atentos ao resultado da
decisão, contra os "formalistas", que se atêm à letra da lei - um debate
doutrinário sério, que ocorre em vários lugares do mundo.
Mas, no caso presente, nem mesmo esse debate aconteceu, ficando os ataques
recíprocos mais no campo pessoal, o que mostra que desta vez não há nenhuma
questão de fundo subjacente.
Há quem atribua os constantes atritos entre os juízes do Supremo ao fato de
que, nos últimos anos, houve uma renovação de seus membros, fazendo com que
hoje haja mais ministros sintonizados com o espírito da Constituição de 1988.
Há também a midiatização dos debates, deflagrada pelo televisionamento direto
das reuniões, uma tendência irreversível que dá transparência às decisões, mas
transformou os ministros do Supremo em celebridades.
Mas a partidarização do Supremo, no entanto, não parece ser a tônica de sua
composição, fenômeno que seria mais tipicamente dos Estados Unidos, onde há o
bipartidarismo, do que no Brasil, onde Lula tanto é capaz de nomear o ministro
Carlos Alberto Direito, um conservador católico, como Eros Grau, que se diz
marxista.
Nomeado por Fernando Henrique Cardoso, Gilmar Mendes mantém um retrato do
ex-presidente em sua mesa de trabalho. Já Joaquim Barbosa, escolhido por
indicação de Frei Betto, ex-assessor especial de Lula, não pode ser
identificado explicitamente com Lula, no máximo com uma ala do PT, tanto que
aceitou a denúncia contra os 40 do mensalão.
E o ministro Cezar Peluso também foi nomeado por Lula e também é dado como
um voto contra os mensaleiros, tanto que sua aposentadoria, em setembro, entra
na conta dos réus como um fator de retardo do julgamento, e sua substituição,
como um voto contrário a menos.
Nesse raciocínio que beneficia os réus, se até lá a questão não estiver
julgada, o processo seria sustado até que a presidente Dilma indicasse o
substituto, o que poderia demorar, ajudando na contagem de tempo para a
prescrição.
Há quem aposte, por sinal, que se os dois ministros que se aposentarão este
ano - Peluso, em setembro, e Ayres Britto, em novembro - tendessem a votar a
favor dos mensaleiros, o PT e a base aliada trabalhariam no Congresso para
aprovar a chamada "PEC da Bengala", passando a idade de aposentadoria
para 75 anos.
No entanto, há uma forte tendência entre os estudiosos de identificar um
grande teor de personalismo nos julgamentos do Supremo, fazendo com que o
tribunal funcione mais como o resultado de posições individuais do que como um
colegiado, o que retiraria da série de nomeações de governos ideologicamente
alinhados - os governos petistas de Lula e Dilma nomearam 8 dos 11 ministros
atuais - a formação de um tribunal à sua imagem e semelhança. Além do mais, o
fato de o mandato ser intocável até a aposentadoria, aos 70 anos, dá ao
ministro nomeado independência em relação a quem o nomeou.
O que preocupou mais o novo presidente do Supremo, ministro Ayres Britto,
foi a declaração de Joaquim Barbosa de que, quando presidente, o ministro Cezar
Peluso manipulou sentenças do Supremo.
A acusação é grave, mais ainda porque destituída de qualquer base na
realidade. Quando termina um julgamento, o presidente da Corte resume o voto vencedor
em voz alta, diante de seus pares e das câmeras de televisão.
Qualquer desvio do resultado, por incompreensão ou erro de interpretação, é
imediatamente rebatido pela maioria.
Além disso, quando é feita pelo relator a ementa com a decisão oficial, todos
os ministros a recebem antes de ser divulgada, ainda a tempo de corrigir algum
eventual erro.
O ministro Joaquim Barbosa referiu-se diretamente ao episódio do voto de
minerva proferido por Peluso a favor de Jader Barbalho na decisão sobre se a
Lei da Ficha Limpa o impedia de assumir uma vaga no Senado, quando Peluso se
recusara a votar duas vezes em outra ocasião.
Na ocasião, porém, explicou que, na primeira sessão de julgamento sobre a
chamada "Ficha Limpa", quando se recusou a desempatar o julgamento, o
fez simplesmente porque a maioria dos ministros presentes não concordou com a
aplicação da regra regimental.
No caso de Jader, porém, todos os ministros presentes, inclusive os que
tinham votado em sentido contrário, decidiram aplicar a regra regimental.
Outro caso polêmico refere-se ao julgamento de Cesare Battisti, quando, logo
depois da votação, Peluso, que era o relator e foi voto vencido, disse que não
tinha condições intelectuais de redigir a ementa com a decisão do Supremo,
ressaltando, com ironia, o que considerava incongruência da decisão de
extraditar o italiano, mas permitir que o presidente da República não cumprisse
os acordos internacionais firmados pelo país.
O ministro Peluso certamente estava reagindo ao voto da maioria, mas não
tentando manipulá-lo.
FONTE: O GLOBO
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