terça-feira, 26 de outubro de 2021

Merval Pereira - Presidente a ser impedido

O Globo

O ex-presidente José Sarney cunhou a expressão “liturgia do cargo” para definir a responsabilidade perante a população de um presidente da República no cargo que ocupa. Das palavras ditas ao comportamento pessoal, tudo tem seu peso político. Mas há distinções entre comportamentos popularescos e aqueles espontâneos, especialmente quando a espontaneidade revela um político excêntrico, mas vencedor e com visão de história.

Não é o caso de Bolsonaro, que já posou para uma foto oficial de ministério com camisa pirata do Palmeiras, jogging e sandálias Rider. Ou ofereceu pão com leite condensado para um enviado oficial do governo dos Estados Unidos. Já divulgou fotos obscenas em seus aplicativos, já falou palavrão em público, enfim, fez de tudo para não respeitar a “liturgia do cargo”.

Nada disso, porém, é mais grave do que usar suas mensagens presidenciais para difundir notícias falsas, especialmente em época de pandemia como a que ainda vivemos. O mais recente desvario do presidente foi divulgar um suposto estudo que afirmaria que os completamente vacinados contra Covid-19 estariam mais sujeitos a contrair Aids. Isso é de uma gravidade assustadora.

O presidente da República fazer campanha contra vacinação é crime que deveria ser punido rigorosamente, como aliás pede o relatório final da CPI da Covid. Provocar aglomeração de propósito é crime que tem como consequência mortes. Dizer que quem se vacina pode virar jacaré vira piada na internet, mas é um ataque à saúde pública. Mas aproveitar-se de um estudo científico fajuto para dar cunho de verdade a uma mentira é demais, até mesmo para um irresponsável como Bolsonaro.


O mesmo ex-presidente Sarney disse uma vez que a cadeira é maior que o homem, referindo-se indiretamente a Bolsonaro. Ele de fato não tem a menor noção do cargo que ocupa por um desses azares da sorte, que fez com que o Brasil tivesse que enfrentar a maior calamidade de saúde pública em um século com o pior presidente de sua história. É pior porque, além de incompetente, coisa que muitos foram, não tem a dimensão da importância do cargo que ocupa.

Abre a boca, e a Bolsa cai, o dólar sobe, a economia vai para o buraco. Conversa no cercadinho como se estivesse num botequim, onde todo mundo pode dar palpite à vontade que não prejudica o país. Saído de seu mundo pequeno para a grandeza da tarefa que recebeu na eleição de 2018, Bolsonaro insiste em pensar pequeno, como se continuasse em seu mundinho do baixo clero.

Suas frases, seus hábitos, seus pensamentos fazem mal ao país, provocam mortes, contribuem para que o Brasil retroceda décadas em poucos anos. Valeu-se da leniência com que foi tratado desde que foi obrigado a sair do Exército, e depois durante 28 anos no Legislativo, para chegar ao Palácio do Planalto num conto de literatura mágica, impensável para o mais criativo dos escritores que quisesse descrever os descaminhos da América Latina.

Só tivemos presidentes improváveis desde a redemocratização, como escrevo em meu livro “Desafios da democracia”, recém-lançado pela editora Topbooks: Sarney, com a morte de Tancredo, presidente do PDS, partido de apoio à ditadura, que acabou vice do candidato de oposição; Collor, uma invenção nascida de uma mente doentia; Itamar Franco, Fernando Henrique, que meses antes do Plano Real não sabia se se elegeria deputado federal; Lula, que perdera três eleições seguidas e teve de inventar um personagem para se eleger; Dilma Rousseff; Michel Temer, e agora Bolsonaro.

Como se vê, nossa história é escrita por linhas tortuosas. Mas não há dúvidas de que Bolsonaro é o pior presidente que já tivemos, pelo conjunto negativo da obra. O mais perigoso também. Precisava ser impedido de continuar no governo. Mas o julgamento que começa hoje no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tudo indica, o poupará. Será absolvido mais um presidente indigno do cargo, com excesso de provas contra si.

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